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Oportunidades da revolução digital

18 de Setembro de 2007, 0:00 , por Software Livre Brasil - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Entrevista exclusiva para Lia Ribeiro Dias da revista "A Rede" (10/08/2007)

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A revolução digital traz uma nova oportunidade para os países em desenvolvimento, que ficaram em posição subalterna na sociedade industrial. Como essa nova sociedade não nasceu do grande capital, mas dos grupos sociais anti-establishment, as bases da comunicação em rede foram estabelecidas sobre protocolos de domínio público e conhecimento compartilhado. É bem verdade que, nos anos 90, a revolução digital foi impulsionada pelo grande capital — e o resultado dos investimentos especulativos foi o estouro da bolha na virada do século. Mas as bases da revolução digital ainda não se alteraram e, neste momento, há uma disputa de poder em torno de modelos, entre os grupos e movimentos sociais que investem colaborativamente no desenvolvimento da comunicação em rede e o grande capital. Ou seja, a nova sociedade não será necessariamente mais democrática ou mais justa. Tudo vai depender dos resultados dessa disputa.

Essa é, em síntese, a visão de Marcelo D’Elia Branco, um gaúcho que há dois anos trabalha como assessor de estratégia para o desenvolvimento de software livre, na secretaria da Sociedade da Informação do governo da Catalunha, na Espanha. Em setembro, Marcelo, que construiu sua carreira profissional na Embratel, então estatal, com passagens pelas empresas públicas de processamento de dados de seu estado, volta ao Brasil. Aceitou o convite para dirigir o Campus Party Brasil (veja matéria da revista A Rede), que será realizado em São Paulo, em fevereiro. É a primeira vez que o evento, uma festa de entretenimento eletrônico e comunicação em rede, será realizado fora da Espanha.

ARede • Você tem dito que estamos vivendo não só uma revolução tecnológica, mas um processo maior do que isso, pois envolve a mudança na relação entre as pessoas. Como é isso?

Marcelo Branco •
Em minha visão, estamos vivendo uma etapa histórica da humanidade que não é só uma revolução tecnológica, caracterizada pela comunicação em rede. A partir das novas perspectivas criadas com essa revolução tecnológica, surge uma nova forma de relacionamento entre os seres humanos. Uma mudança tão profunda como foi a revolução industrial no séculos 18 e 19, da qual se originaram todas as organizações que conhecemos hoje, sejam elas empresas, organizações sociais, partidos políticos e o próprio Estado.

A revolução tecnológica atual, que está em desenvolvimento nos últimos 14, 15 anos, está produzindo novas formas de relacionamento social e econômico. As mudanças ocorrem a partir dos novos atributos proporcionados pela internet, pela revolução digital. Então, sem sombra de dúvidas, a humanidade está passando por uma grande transformação. E, nesse período de transformação, é necessário que os países discutam como será a sua transição do modelo de revolução industrial para o modelo da sociedade em rede. Os países e as regiões que não transitarem bem, ou que demorarem ou se atrasarem nessa transição para a sociedade em rede, serão os países subalternos no século 21. O que a gente observa é que estamos tendo um reposicionamento dos países e das regiões na esfera global, assim como ocorreu na revolução industrial. Países que eram líderes no período anterior, mas não acompanharam a transição ou demoraram para chegar no processo da tecnologia industrial, ficaram para trás; enquanto países que fizeram rápido essa transição, como Inglaterra, Estados Unidos e países europeus, lideraram o processo da revolução industrial. A mesma coisa está acontecendo agora.

ARede •
Você acredita que essa nova revolução vai, necessariamente, produzir uma sociedade melhor?

Marcelo •
Não é simplesmente o novo patamar tecnológico, ou o grau de digitalização da sociedade nessa nova forma de relacionamento, que vai produzir uma sociedade melhor. A sociedade em rede tanto poderá ser uma sociedade mais democrática, com mais liberdade e maior desenvolvimento econômico, com distribuição de renda, como poderá ser uma sociedade mais autoritária, com maior concentração de renda e menos liberdade para o cidadão. Na revolução industrial, a corrida por avanços tecnológicos produziu diferentes tipos de sociedades: das fascistas, na Europa, à de inspiração de esquerda mais autoritária, no Leste Europeu, passando pela sociedade liberal individualista, como é o caso dos Estados Unidos, e pela sociedade do bem estar na Europa. Todos esses modelos sociais, apesar de bastante distintos, tinham o objetivo de serem os mais avançados nas tecnologias geradas a partir da revolução industrial.

Agora, também começam a ser desenhados modelos diferentes pelos que, hoje, lideram a sociedade da comunicação em rede. A Finlândia, que reproduz o modelo europeu do bem estar social; Cingapura, onde praticamente toda população e toda economia estão conectadas em rede, vive uma ditadura; e os Estados Unidos continuam uma sociedade individualista, liberal e com traços autoritários na legislação. É importante salientar que a legislação norte-americana é um dos piores exemplos para construção de uma sociedade democrática, nesse novo paradigma tecnológico.

ARede •
Quais são as oportunidades que essa revolução, baseada na comunicação em rede, traz para os países em desenvolvimento?
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Marcelo •
A Finlândia, exemplo que citei, não foi líder no processo da revolução industrial; no entanto, hoje, é um país que registra elevadas taxas de crescimento e de produtividade, porque conseguiu transitar para um modelo social em rede. Então, acho que essa pode ser uma grande oportunidade para o Brasil, desde que existam políticas públicas associadas às já realizadas pela sociedade civil, que possam ser potencializadas através de ações governamentais, e com participação da iniciativa privada. O Brasil, que perdeu a corrida da revolução industrial, pode ter um papel protagonista nesse novo cenário da revolução digital, onde novas disputas se estabelecem. E pode ser um dos líderes nessa transição, porque, por traço cultural e de comportamento, o brasileiro tem grande facilidade em transitar pela internet e de se apropriar dos benefícios da comunicação em rede. Apesar de termos ainda um grau baixo de inclusão digital, somos 50 milhões de brasileiros conectados à internet, muito mais que uma Espanha inteira, e com uma grande familiaridade com a rede. Somos 70% do Orkut e quase a metade do Second Life; temos uma das maiores comunidades de software livre do mundo e as melhores comunidades de desenvolvedores de criação digital.

Os brasileiros têm mostrado que esse novo cenário tem a ver com a sua cultura, com as suas características de fácil relacionamento. Não é apressado dizer que a parcela dos brasileiros conectada à internet já está vivendo a sociedade em rede. Enquanto isso, muitas empresas privadas, principalmente as pequenas e médias, ainda estão fora, da mesma forma que os governos. O setor público tem dificuldade de entrar nesse novo cenário e mudar suas formas de relacionamento com a população. O mesmo se observa nos partidos políticos.

Como, na Sociedade da Informação, o principal capital é o conhecimento, a colaboração em rede se transforma em elemento-chave para alavancar o desenvolvimento econômico. A colaboração é um atributo dessa nova sociedade, e, através da colaboração entre pequenos conhecimentos, pode se construir um conhecimento muito grande. O Brasil, que tem um grande contingente de pequenos desenvolvedores de tecnologia e muitas pequenas empresas desenvolvedoras independentes, tem tudo para, reunindo esse potencial em rede, ser um país que absorva esse conhecimento e possa ser um gerador de novos conhecimentos, até para o mercado internacional.

Para o Brasil caminhar nessa direção, o que falta, entre outras medidas, é que as políticas de inclusão digital sejam consistentes com nossas políticas industriais. Hoje, não conseguimos fazer isso, infelizmente. O Brasil, por exemplo, defende, na Organização Mundial de Propriedade Intelectual, a flexibilização da propriedade intelectual. Em outros fóruns, ao lado da Argentina, lidera a chamada agenda de desenvolvimento. Nas cúpulas da Sociedade da Informação, tanto de Genebra como de Túnis, foi o grande defensor do software livre e da cultura livre. Temos programas de inclusão digital bastante interessantes em todo o território nacional, mas a nossa política industrial é totalmente desconectada dessas bandeiras. Não conseguimos nem derrubar as barreiras para que as pequenas e médias empresas, que desenvolvem em software livre, possam ser contratadas como fornecedoras do governo, porque o sistema de contratação beneficia o modelo do software proprietário. O modelo de exportação de software, com que o país trabalha, é uma idéia antiga que não teve êxito, porque é um modelo já ultrapassado. Ele não utiliza as vantagens dos novos atributos da internet, da revolução digital.

Mesmo assim, acredito que o Brasil tem grandes possibilidades de dar um salto de desenvolvimento econômico e social nesse novo modelo de sociedade em rede. Basta reorientar a política industrial e de desenvolvimento tecnológico em direção ao novo paradigma da sociedade digital. Isso vai permitir dinamizar todo o conjunto do setor industrial de serviços.

ARede •
Como aproveitar as vantagens da comunicação em rede para alavancar o desenvolvimento do país, a democratização do acesso à informação e apropriação do conhecimento de uma forma mais homogênea na sociedade?

Marcelo •
As escolhas a serem feitas pelo governo brasileiro, pela sociedade civil e pelo setor privado é que vão determinar o grau de democracia que o nosso país vai viver nesse novo cenário. Depende de como se vai tratar a questão do software, da propriedade intelectual, se será estimulado o conhecimento colaborativo e a cultura livre, ou não. Quanto mais o país ousar nesse novo cenário, em direção ao conhecimento compartilhado, às novas relações entre o produtor de uma obra intelectual ou de um produto tecnológico, seja ela um filme, uma música ou um software, e o consumidor, mais democrático ele será.

Hoje, o que encarece o produto para o consumidor é a cadeia de intermediação; é ela que tem parte relevante dos benefícios das leis de propriedade intelectual, proteção e ampliação de direitos autorais, etc. A possibilidade de construirmos, no Brasil, uma referência não só no plano de desenvolvimento da sociedade em rede, mas também no plano dos direitos do indivíduo de acesso ao conhecimento — e esse deve ser o eixo das legislações sobre internet —, vai ser determinante para que o Brasil seja um país democrático no século 21. No período anterior, essa indústria intermediária até tinha um sentido, porque transformava matéria-prima em produto, seja na produção de CD ou do disco de vinil, de películas de filmes, de livros de papel. Na sociedade da comunicação em rede, a distribuição é feita pela tecnologia, pela internet. Então, não faz sentido manter o mesmo modelo econômico, de pagar o mesmo preço por uma música, por exemplo, ou de os produtores intelectuais continuarem a ter que vender a propriedade de seu conhecimento para o intermediário.

Creio que as possibilidades, nesse novo cenário, estão abertas e são melhores para nosso país. Tudo vai depender das escolhas feitas pelo Parlamento brasileiro, pela sociedade civil e pelo Executivo. Eu acho que o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo, sobre crimes na internet, é um mau começo para o país. No lugar de o Congresso estar legislando sobre os direitos dos cidadãos frente à tecnologia, sob a ótica dos direitos humanos, vamos partir do princípio de que a internet é um local de criminosos. Não temos que ter uma lei especial para crimes na internet, como não tivemos uma lei especial para crimes por telefone, etc. Crime é crime e, como tal, deve ser investigado e punido. Não há nada na legislação brasileira que impeça que pedofilia na internet seja reprimida, que os crimes econômicos praticados através da internet sejam reprimidos, que os abusos de qualquer ordem sejam enquadrados como crime. Essa idéia de o Brasil ter uma legislação que criminaliza práticas na internet, antes da definição dos direitos, parece-me um retrocesso muito grande.

ARede •
Você aponta o software livre como um dos motores dessa sociedade em rede. Por que? Qual é o papel que ele exerce?

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Marcelo •
O sistema operacional GNU/Linux é o projeto mais conhecido do mundo do software livre, mas não podemos esquecer que a internet é um grande software livre. Os protocolos que fazem a internet funcionar são de domínio público; ninguém paga licenças, ninguém paga royalties, nada é patenteado. Essa idéia de que o software livre é uma coisa e a internet é outra, como querem os grandes capitalistas conservadores, não procede. A internet é um grande êxito do software livre e seus criadores são os mesmos criadores do software livre. Por isso, não existe nenhuma área do conhecimento humano que teve o maior êxito na internet que a do software livre.

Isso não ocorre por uma razão alheia à história dos desenvolvedores das tecnologias do mundo. Sempre quem cria a tecnologia é capaz de, num primeiro momento, usar melhor seus potenciais e atributos. Essa é a razão de a comunidade de software livre ser o grande êxito da internet. O trabalho colaborativo desenvolvido por ela e as licenças comuns começam a se expandir para outras áreas do conhecimento: temos, na produção cultural, as licenças Creative Commons; na economia, os clusters de produção sistemas locais. Não há como pensar na sociedade do futuro, sem que esta lógica esteja presente.

ARede •
Dentro desse contexto, o que pode representar a realização do Campus Party no Brasil, no próximo ano?

Marcelo •
O Brasil foi escolhido exatamente por ser uns dos países importantes no contexto da comunicação em rede. Apesar do atraso de alguns setores, parte da sociedade brasileira, mesmo quem freqüenta os pontos de acesso coletivos, movimenta-se muito bem na internet, do ponto de vista de uso das redes sociais. Isso nos torna um mercado potencial para as empresas de tecnologia, em função da dimensão do nosso país. Soma-se a isso o fato de eu estar trabalhando na Espanha, de conhecer o Campus Party e de ter aceito desenvolver essa atividade no Brasil, aproveitando os conhecimentos que adquiri na minha experiência profissional fora do país.

Eu acredito que o Campus Party no Brasil não será só a maior festa da internet abaixo linha do Equador. Será uma oportunidade para o Brasil conhecer o Brasil, aquele Brasil que faz sucesso no exterior, em áreas como software livre, astronomia, robótica, arte com computador, criação coletiva por computador. Muita gente, no Brasil, não sabe o que os grupos brasileiros estão fazendo nessas áreas. O Campus Party poderá, por isso, ser um momento de o país conhecer e reconhecer o seu potencial nesse novo cenário tecnológico. Também será um momento para empresas nacionais, em colaboração ou não com empresas estrangeiras, mostrarem o que estão desenvolvendo e como se colocam nesse novo cenário. Além disso, vai permitir a troca de experiências e conhecimento entre brasileiros e espanhóis, ampliando os laços entre as duas culturas, por meio das sociedades em rede.


Fonte: /bin/view/Blogs/BlogPostMarceloBranco20070918084808

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