Entrevista exclusiva para Lia Ribeiro Dias da revista "A Rede" (10/08/2007)
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A revolução digital traz uma nova oportunidade para os países em
desenvolvimento, que ficaram em posição subalterna na sociedade
industrial. Como essa nova sociedade não nasceu do grande capital, mas
dos grupos sociais anti-establishment, as bases da comunicação em rede
foram estabelecidas sobre protocolos de domínio público e conhecimento
compartilhado. É bem verdade que, nos anos 90, a revolução digital foi
impulsionada pelo grande capital — e o resultado dos investimentos
especulativos foi o estouro da bolha na virada do século. Mas as bases
da revolução digital ainda não se alteraram e, neste momento, há uma
disputa de poder em torno de modelos, entre os grupos e movimentos
sociais que investem colaborativamente no desenvolvimento da
comunicação em rede e o grande capital. Ou seja, a nova sociedade não
será necessariamente mais democrática ou mais justa. Tudo vai depender
dos resultados dessa disputa.
Essa é, em síntese, a visão de Marcelo D’Elia Branco, um gaúcho que há
dois anos trabalha como assessor de estratégia para o desenvolvimento
de software livre, na secretaria da Sociedade da Informação do governo
da Catalunha, na Espanha. Em setembro, Marcelo, que construiu sua carreira profissional na
Embratel, então estatal, com passagens pelas empresas públicas de
processamento de dados de seu estado, volta ao Brasil. Aceitou o
convite para dirigir o Campus Party Brasil (veja matéria da revista A Rede), que será realizado em São Paulo, em fevereiro. É a primeira vez que o evento,
uma festa de entretenimento eletrônico e comunicação em rede, será
realizado fora da Espanha.
ARede • Você tem dito que estamos vivendo não só uma revolução
tecnológica, mas um processo maior do que isso, pois envolve a mudança
na relação entre as pessoas. Como é isso?
Marcelo Branco • Em minha visão, estamos vivendo uma etapa histórica da
humanidade que não é só uma revolução tecnológica, caracterizada pela
comunicação em rede. A partir das novas perspectivas criadas com essa
revolução tecnológica, surge uma nova forma de relacionamento entre os
seres humanos. Uma mudança tão profunda como foi a revolução industrial
no séculos 18 e 19, da qual se originaram todas as organizações que
conhecemos hoje, sejam elas empresas, organizações sociais, partidos
políticos e o próprio Estado.
A revolução tecnológica atual, que está em desenvolvimento nos últimos
14, 15 anos, está produzindo novas formas de relacionamento social e
econômico. As mudanças ocorrem a partir dos novos atributos
proporcionados pela internet, pela revolução digital. Então, sem sombra
de dúvidas, a humanidade está passando por uma grande transformação. E,
nesse período de transformação, é necessário que os países discutam
como será a sua transição do modelo de revolução industrial para o
modelo da sociedade em rede. Os países e as regiões que não transitarem
bem, ou que demorarem ou se atrasarem nessa transição para a sociedade
em rede, serão os países subalternos no século 21. O que a gente
observa é que estamos tendo um reposicionamento dos países e das
regiões na esfera global, assim como ocorreu na revolução industrial.
Países que eram líderes no período anterior, mas não acompanharam a
transição ou demoraram para chegar no processo da tecnologia
industrial, ficaram para trás; enquanto países que fizeram rápido essa
transição, como Inglaterra, Estados Unidos e países europeus, lideraram
o processo da revolução industrial. A mesma coisa está acontecendo
agora.
ARede • Você acredita que essa nova revolução vai, necessariamente, produzir uma sociedade melhor?
Marcelo • Não é simplesmente o novo patamar tecnológico, ou o grau de
digitalização da sociedade nessa nova forma de relacionamento, que vai
produzir uma sociedade melhor. A sociedade em rede tanto poderá ser uma
sociedade mais democrática, com mais liberdade e maior desenvolvimento
econômico, com distribuição de renda, como poderá ser uma sociedade
mais autoritária, com maior concentração de renda e menos liberdade
para o cidadão. Na revolução industrial, a corrida por avanços
tecnológicos produziu diferentes tipos de sociedades: das fascistas, na
Europa, à de inspiração de esquerda mais autoritária, no Leste
Europeu, passando pela sociedade liberal individualista, como é o caso
dos Estados Unidos, e pela sociedade do bem estar na Europa. Todos
esses modelos sociais, apesar de bastante distintos, tinham o objetivo
de serem os mais avançados nas tecnologias geradas a partir da
revolução industrial.
Agora, também começam a ser desenhados modelos diferentes pelos que,
hoje, lideram a sociedade da comunicação em rede. A Finlândia, que
reproduz o modelo europeu do bem estar social; Cingapura, onde
praticamente toda população e toda economia estão conectadas em rede,
vive uma ditadura; e os Estados Unidos continuam uma sociedade
individualista, liberal e com traços autoritários na legislação. É
importante salientar que a legislação norte-americana é um dos piores
exemplos para construção de uma sociedade democrática, nesse novo
paradigma tecnológico.
ARede • Quais são as oportunidades que essa revolução, baseada na comunicação em rede, traz para os países em desenvolvimento?
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Marcelo • A Finlândia, exemplo que citei, não foi líder no processo da
revolução industrial; no entanto, hoje, é um país que registra elevadas
taxas de crescimento e de produtividade, porque conseguiu transitar
para um modelo social em rede. Então, acho que essa pode ser uma grande
oportunidade para o Brasil, desde que existam políticas públicas
associadas às já realizadas pela sociedade civil, que possam ser
potencializadas através de ações governamentais, e com participação da
iniciativa privada. O Brasil, que perdeu a corrida da revolução
industrial, pode ter um papel protagonista nesse novo cenário da
revolução digital, onde novas disputas se estabelecem. E pode ser um
dos líderes nessa transição, porque, por traço cultural e de
comportamento, o brasileiro tem grande facilidade em transitar pela
internet e de se apropriar dos benefícios da comunicação em rede.
Apesar de termos ainda um grau baixo de inclusão digital, somos 50
milhões de brasileiros conectados à internet, muito mais que uma
Espanha inteira, e com uma grande familiaridade com a rede. Somos 70%
do Orkut e quase a metade do Second Life; temos uma das maiores
comunidades de software livre do mundo e as melhores comunidades de
desenvolvedores de criação digital.
Os brasileiros têm mostrado que esse novo cenário tem a ver com a sua
cultura, com as suas características de fácil relacionamento. Não é
apressado dizer que a parcela dos brasileiros conectada à internet já
está vivendo a sociedade em rede. Enquanto isso, muitas empresas
privadas, principalmente as pequenas e médias, ainda estão fora, da
mesma forma que os governos. O setor público tem dificuldade de entrar
nesse novo cenário e mudar suas formas de relacionamento com a
população. O mesmo se observa nos partidos políticos.
Como, na Sociedade da Informação, o principal capital é o conhecimento,
a colaboração em rede se transforma em elemento-chave para alavancar o
desenvolvimento econômico. A colaboração é um atributo dessa nova
sociedade, e, através da colaboração entre pequenos conhecimentos, pode
se construir um conhecimento muito grande. O Brasil, que tem um grande
contingente de pequenos desenvolvedores de tecnologia e muitas pequenas
empresas desenvolvedoras independentes, tem tudo para, reunindo esse
potencial em rede, ser um país que absorva esse conhecimento e possa
ser um gerador de novos conhecimentos, até para o mercado internacional.
Para o Brasil caminhar nessa direção, o que falta, entre outras
medidas, é que as políticas de inclusão digital sejam consistentes com
nossas políticas industriais. Hoje, não conseguimos fazer isso,
infelizmente. O Brasil, por exemplo, defende, na Organização Mundial de
Propriedade Intelectual, a flexibilização da propriedade intelectual.
Em outros fóruns, ao lado da Argentina, lidera a chamada agenda de
desenvolvimento. Nas cúpulas da Sociedade da Informação, tanto de
Genebra como de Túnis, foi o grande defensor do software livre e da
cultura livre. Temos programas de inclusão digital bastante
interessantes em todo o território nacional, mas a nossa política
industrial é totalmente desconectada dessas bandeiras. Não conseguimos
nem derrubar as barreiras para que as pequenas e médias empresas, que
desenvolvem em software livre, possam ser contratadas como fornecedoras
do governo, porque o sistema de contratação beneficia o modelo do software proprietário. O modelo de exportação de software, com que o
país trabalha, é uma idéia antiga que não teve êxito, porque é um
modelo já ultrapassado. Ele não utiliza as vantagens dos novos
atributos da internet, da revolução digital.
Mesmo assim, acredito que o Brasil tem grandes possibilidades de dar um
salto de desenvolvimento econômico e social nesse novo modelo de
sociedade em rede. Basta reorientar a política industrial e de
desenvolvimento tecnológico em direção ao novo paradigma da sociedade
digital. Isso vai permitir dinamizar todo o conjunto do setor
industrial de serviços.
ARede • Como aproveitar as vantagens da comunicação em rede para
alavancar o desenvolvimento do país, a democratização do acesso à
informação e apropriação do conhecimento de uma forma mais homogênea na
sociedade?
Marcelo • As escolhas a serem feitas pelo governo brasileiro, pela
sociedade civil e pelo setor privado é que vão determinar o grau de
democracia que o nosso país vai viver nesse novo cenário. Depende de
como se vai tratar a questão do software, da propriedade intelectual,
se será estimulado o conhecimento colaborativo e a cultura livre, ou
não. Quanto mais o país ousar nesse novo cenário, em direção ao
conhecimento compartilhado, às novas relações entre o produtor de uma
obra intelectual ou de um produto tecnológico, seja ela um filme, uma
música ou um software, e o consumidor, mais democrático ele será.
Hoje, o que encarece o produto para o consumidor é a cadeia de
intermediação; é ela que tem parte relevante dos benefícios das leis de
propriedade intelectual, proteção e ampliação de direitos autorais,
etc. A possibilidade de construirmos, no Brasil, uma referência não só
no plano de desenvolvimento da sociedade em rede, mas também no plano
dos direitos do indivíduo de acesso ao conhecimento — e esse deve ser o
eixo das legislações sobre internet —, vai ser determinante para que o
Brasil seja um país democrático no século 21. No período anterior, essa
indústria intermediária até tinha um sentido, porque transformava
matéria-prima em produto, seja na produção de CD ou do disco de vinil,
de películas de filmes, de livros de papel. Na sociedade da comunicação
em rede, a distribuição é feita pela tecnologia, pela internet. Então,
não faz sentido manter o mesmo modelo econômico, de pagar o mesmo preço
por uma música, por exemplo, ou de os produtores intelectuais
continuarem a ter que vender a propriedade de seu conhecimento para o
intermediário.
Creio que as possibilidades, nesse novo cenário, estão abertas e são
melhores para nosso país. Tudo vai depender das escolhas feitas pelo
Parlamento brasileiro, pela sociedade civil e pelo Executivo. Eu acho
que o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo, sobre crimes na
internet, é um mau começo para o país. No lugar de o Congresso estar
legislando sobre os direitos dos cidadãos frente à tecnologia, sob a
ótica dos direitos humanos, vamos partir do princípio de que a internet
é um local de criminosos. Não temos que ter uma lei especial para
crimes na internet, como não tivemos uma lei especial para crimes por
telefone, etc. Crime é crime e, como tal, deve ser investigado e
punido. Não há nada na legislação brasileira que impeça que pedofilia
na internet seja reprimida, que os crimes econômicos praticados através
da internet sejam reprimidos, que os abusos de qualquer ordem sejam
enquadrados como crime. Essa idéia de o Brasil ter uma legislação que
criminaliza práticas na internet, antes da definição dos direitos,
parece-me um retrocesso muito grande.
ARede • Você aponta o software livre como um dos motores dessa sociedade em rede. Por que? Qual é o papel que ele exerce?
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Marcelo • O sistema operacional GNU/Linux é o projeto mais conhecido do
mundo do software livre, mas não podemos esquecer que a internet é um
grande software livre. Os protocolos que fazem a internet funcionar são
de domínio público; ninguém paga licenças, ninguém paga royalties, nada
é patenteado. Essa idéia de que o software livre é uma coisa e a
internet é outra, como querem os grandes capitalistas conservadores,
não procede. A internet é um grande êxito do software livre e seus
criadores são os mesmos criadores do software livre. Por isso, não
existe nenhuma área do conhecimento humano que teve o maior êxito na
internet que a do software livre.
Isso não ocorre por uma razão alheia à história dos desenvolvedores das
tecnologias do mundo. Sempre quem cria a tecnologia é capaz de, num
primeiro momento, usar melhor seus potenciais e atributos. Essa é a
razão de a comunidade de software livre ser o grande êxito da internet.
O trabalho colaborativo desenvolvido por ela e as licenças comuns
começam a se expandir para outras áreas do conhecimento: temos, na
produção cultural, as licenças Creative Commons; na economia, os
clusters de produção sistemas locais. Não há como pensar na sociedade
do futuro, sem que esta lógica esteja presente.
ARede • Dentro desse contexto, o que pode representar a realização do Campus Party no Brasil, no próximo ano?
Marcelo • O Brasil foi escolhido exatamente por ser uns dos países
importantes no contexto da comunicação em rede. Apesar do atraso de
alguns setores, parte da sociedade brasileira, mesmo quem freqüenta os
pontos de acesso coletivos, movimenta-se muito bem na internet, do
ponto de vista de uso das redes sociais. Isso nos torna um mercado
potencial para as empresas de tecnologia, em função da dimensão do
nosso país. Soma-se a isso o fato de eu estar trabalhando na Espanha,
de conhecer o Campus Party e de ter aceito desenvolver essa atividade
no Brasil, aproveitando os conhecimentos que adquiri na minha
experiência profissional fora do país.
Eu acredito que o Campus Party no Brasil não será só a maior festa da
internet abaixo linha do Equador. Será uma oportunidade para o Brasil
conhecer o Brasil, aquele Brasil que faz sucesso no exterior, em áreas
como software livre, astronomia, robótica, arte com computador, criação
coletiva por computador. Muita gente, no Brasil, não sabe o que os
grupos brasileiros estão fazendo nessas áreas. O Campus Party poderá,
por isso, ser um momento de o país conhecer e reconhecer o seu
potencial nesse novo cenário tecnológico. Também será um momento para
empresas nacionais, em colaboração ou não com empresas estrangeiras,
mostrarem o que estão desenvolvendo e como se colocam nesse novo
cenário. Além disso, vai permitir a troca de experiências e
conhecimento entre brasileiros e espanhóis, ampliando os laços entre as
duas culturas, por meio das sociedades em rede.
Oportunidades da revolução digital
18 de Setembro de 2007, 0:00 - sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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