Conferência de encerramento da V Conferência Estadual dos Advogados do Paraná, realizada pela OAB-PR, no dia 15 de agosto de 2014.
EM DEFESA DA DIGNIDADE DO POVO BRASILEIRO*
Fábio Konder Comparato**
O tema desta Conferência Estadual de Advogados é o das reformas que se fazem necessárias na sociedade brasileira. Em meu modesto entender, porém, o Brasil não precisa tão-só de reformas, mas sim de uma substancial transformação; ou seja, de uma mudança radical nos dois elementos que estruturam toda e qualquer sociedade política, a saber, a mentalidade coletiva e o poder.
A noção de mentalidade, aplicada aos grupos sociais, indica o conjunto de valores, crenças e opiniões dominantes, no seio do grupo, formando aquilo que os alemães denominaram Weltanschauung; literalmente, visão de mundo. Em estreita relação com ela, atua sempre o poder, isto é, a capacidade dos chefes ou dirigentes sociais de mandar e de serem obedecidos.
Durante milênios, em todas as civilizações mundo afora, mentalidade e poder foram conjuntamente moldados pela fé religiosa. O fundamento ético da conduta humana era de natureza sobrenatural. A partir do início da era moderna e do nascimento da civilização capitalista na Baixa Idade Média europeia, porém, tudo começou a mudar. Verificou-se um enfraquecimento progressivo da fé religiosa e a construção de uma nova estrutura de poder político, fundada doravante na razão e na vontade humanas, sem recurso a uma autoridade extraterrena. Ora, pouco a pouco, os titulares da soberania política passaram a atuar em seu próprio benefício e a moldar a mentalidade coletiva em função de seus interesses pessoais, de casta ou de classe.
Se quisermos, portanto, refletir sobre a transformação substancial de que o Brasil precisa no presente, de acordo com os grandes princípios de liberdade, igualdade, solidariedade e segurança, devemos, antes de tudo, compreender a natureza da sociedade brasileira, em termos de mentalidade coletiva e de poder político supremo.
A tradição brasileira: uma oligarquia sem povo
Desde o primeiro século da colonização, os portugueses formaram no Brasil uma sociedade essencialmente capitalista, na qual o grande objetivo de vida consistia no exercício da atividade empresarial para a busca do lucro máximo. O instrumento para tanto foi a concentração do poder em mãos de uma minoria, formada pela associação de grandes proprietários e empresários com os principais agentes políticos.
Não nos esqueçamos, com efeito, que em Portugal, desde a inauguração da dinastia de Avis, na segunda metade do século XIV, o poder estatal sempre exerceu papel preponderante na organização da sociedade, como acentuaram, entre nós, Sérgio Buarque de Holanda (Raizes do Brasil) e Raymundo Faoro (Os Donos do Poder).
Quanto ao povo propriamente dito, sem falar na multidão de escravos, ele nunca, nem de longe, deteve a soberania. Salvo períodos de curta duração, ficou totalmente alheio ao esquema geral de exercício do poder político; mesmo quando, a partir do período republicano, foi constitucionalmente proclamado como a fonte de onde emanam todos os poderes.
No seio da multidão dos pobres de todo gênero – os nascidos “para mandados e não para mandar”, conforme a saborosa expressão camoniana – a titularidade de autênticos direitos subjetivos somente surgiu no século passado; primeiramente no meio urbano em matéria trabalhista e, algumas décadas depois em reduzidas partes do meio rural. No campo social ou político, o que sempre existiu, isto sim, foi a possibilidade de receber, de quando em quando, favores dos “donos do poder”.
Segundo a análise marxista, com a instauração do capitalismo os verdadeiros titulares do poder político passaram a ser os integrantes da classe burguesa, permanecendo os agentes públicos como seus mandatários, ou melhor, seus prepostos (como os caixeiros nas lojas comerciais). Em contraste com essa análise, Max Weber sustentou que a partir de fins do século XIX, ter-se-ia instaurado nas sociedades modernas do Ocidente – tendendo a daí espraiar-se pelo resto do mundo – um regime de autonomia do estamento burocrático. Como sabido, Raymundo Faoro procurou aplicar ao Brasil essa análise weberiana.[1]
Nenhuma dessas interpretações unilaterais, entretanto, me parece aceitável para o caso brasileiro. Os dois grupos dominantes acima nomeados – agentes estatais e potentados privados – sempre atuaram em íntima associação, estabelecendo-se entre eles aquela “dialética da ambigüidade” a que se referiu o historiador José Murilo de Carvalho, ao retomar uma expressão cunhada pelo sociólogo Guerreiro Ramos.[2] Em toda a nossa evolução histórica, a realidade do poder político permaneceu encoberta pelas aparências oficiais. Oficialmente, os agentes do Estado são servidores do soberano: os antigos monarcas e atualmente o povo. Por sua vez, os grandes proprietários e empresários procuram mostrar-se sempre subordinados ao poder burocrático estatal. Na realidade, ambos esses grupos exercem conjuntamente o poder supremo, e é graças a essa colaboração que cada qual logra realizar o seu próprio interesse estamental ou de classe.
Foi essa a matriz histórica do caráter dúplice dos nossos ordenamentos jurídicos, nos dois sentidos da palavra: dobrado e dissimulado.
A duplicidade permanente dos nossos ordenamentos jurídicos
Durante o período colonial, o direito escrito – as Ordenações do Reino, acrescidas das leis, provisões e alvarás posteriores, bem como dos assentos da Casa da Suplicação – vinha todo da metrópole; ou seja, tinha o sabor de regras importadas, estranhas ao nosso meio. A tais regras devia-se respeito, mas não necessariamente obediência, à semelhança da máxima difundida em toda a América Espanhola: las Ordenanzas del Rey Nuestro Señor se acátan pero no se cúmplen.
Para a construção, ano após ano, desse sistema de trompe l’oeil, como dizem os franceses – ou seja, o direito oficial posto artificialmente em relevo, a fim de criar a ilusão de corresponder à realidade –, muito contribuíram os altos funcionários enviados de Portugal, os quais, aqui chegados, estabeleciam, desde logo, uma aliança tácita com os grandes senhores rurais; quando não se uniam a eles pelos laços do compadrio ou do matrimônio. Os representantes da Coroa portuguesa sempre atuaram, no vasto território da colônia, imunes a toda fiscalização da metrópole, bastando indicar, a esse respeito, que até o século XVIII havia uma única ligação marítima por ano entre Portugal e Brasil.
Análoga duplicidade foi estabelecida logo após a nossa Independência. Como bem salientou Sérgio Buarque de Holanda,[3] “dificilmente se podem compreender os traços dominantes da política imperial sem ter em conta a presença de uma Constituição ‘não escrita’ que, com a complacência dos dois partidos, se sobrepõe em geral à Carta de 1824 e ao mesmo tempo vai solapá-la”.
Assim, tudo o que dizia respeito à escravidão negra, pedra fundamental sobre a qual se assentou, durante quase quatro séculos, o edifício de nossa economia, era regulado por um duplo direito: o oficial, meramente ostentado, e o real, efetivamente aplicado. Exemplo maior foi o da Lei de 7 de novembro de 1831. Ela foi promulgada durante a Regência, em cumprimento a um tratado internacional que celebramos com a Inglaterra em 1826. Pelo teor desse diploma legal, eram declarados livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora”. Eles seriam reexportados “para qualquer parte da África”, e os “importadores” sujeitos a processo penal; entendendo-se por “importadores”, não só o comandante, o mestre e o contramestre da embarcação, mas também os armadores da expedição marítima, bem como todos aqueles que “cientemente comprarem como escravos” as pessoas ilegalmente trazidas ou desembarcadas no Brasil. Ora, como se tratava simplesmente de uma “lei para inglês ver”, nenhuma das penalidades nela cominadas foi jamais aplicada. Calcula-se terem sido para aqui contrabandeados como escravos, desde a promulgação daquele diploma legal até 1850 – quando entrou em vigor a Lei Eusébio de Queiroz, que pôs fim ao tráfico negreiro – nada menos do que 750 mil africanos.
Como era de se esperar, esse mesmo dualismo jurídico não desapareceu com a extinção do regime monárquico em 15 de novembro de 1889. Ao contrário, consolidou-se entre nós aquele que Jean-Jacques Rousseau considerava “o pior de todos os abusos”; a saber, “obedecer apenas aparentemente às leis, para melhor infringi-las com segurança” (Discours sur l’économie politique).
Vejamos, para ilustração do que acaba de ser dito, o dualismo da atual Constituição.
A Constituição atual: o verso e o reverso
Logo no artigo de abertura do texto constitucional, declara-se que “a República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito”. No nível de nossa realidade política, contudo, os princípios fundamentais da República, da Democracia e do Estado de Direito permanecem praticamente inaplicados.
Nossa mentalidade coletiva nunca foi republicana, no sentido etimológico da palavra; ou seja, para nós o bem comum do povo (res publica) jamais sobrepujou o interesse particular de indivíduos ou grupos sociais. Em sua História do Brasil, editada em 1627, Frei Vicente do Salvador já o advertira: “Nem um homem nesta terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.
É fartamente sabido, aliás, que o espírito capitalista sempre animou nossas classes dominantes, dispondo-as a colocar a realização do interesse material de cada indivíduo como meta última de vida. Em conseqüência, vários bens públicos, assim declarados pelo texto constitucional, tais como as terras devolutas, são sistematicamente privatizados, até mesmo por meio de decretos governamentais. Sob a atual pressão do agronegócio, por exemplo, o governo federal tem dado permissões, ou feito vista grossa, à ocupação privada de segmentos crescentes da floresta amazônica, cuja importância ecológica, como sabido, ultrapassa em muito os limites do território nacional. Estima-se, assim, que um quinto desse reserva florestal já foi arrasado.
A mesma violação do princípio republicano instalou-se, desde o regime empresarial-militar de 1964, no setor dos meios de comunicação de massa. Logo após a independência dos Estados Unidos, um dos seus Founding Fathers, James Madison, teve ocasião de advertir: “Um governo popular, sem informação popular, é um prólogo à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas”. A farsa, nós já a conhecemos. Resta saber se ainda há tempo de se evitar a tragédia.
Como ninguém ignora, os meios de comunicação social são hoje, na sociedade de massas instaurada no mundo todo, o principal veículo de exercício do poder ideológico, moldando sistematicamente as mentalidades coletivas. Ora, entre nós a grande imprensa, o rádio e a televisão encontram-se, desde o regime empresarial-militar de 1964, submetidos ao controle de um oligopólio privado, que exerce influência dominante sobre o Congresso Nacional. Em razão disso, transcorrido mais de um quarto de século, desde que promulgada a atual Constituição, os principais dispositivos do Capítulo V do Título VIII ainda não entraram efetivamente em vigor, por falta da necessária regulação legislativa. Por exemplo, a norma do art. 220, § 5º, proibindo que os meios de comunicação social possam ser objeto de monopólio ou oligopólio. Ou então, o dispositivo do art. 221, inciso I, determinando que se dê preferência, na produção e programação das emissoras de rádio e televisão, a finalidades “educativas, artísticas, culturais e informativas”.
Diante desse prolongado vazio legislativo, tive ocasião de propor ao Conselho Federal da OAB o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. O Conselho, porém, rejeitou essa proposta, seguindo parecer da sua Comissão de Estudos Constitucionais. Voltei-me, então, para um partido político com assento no Congresso Nacional e uma confederação sindical de trabalhadores, os quais aceitaram ajuizar perante o Supremo Tribunal Federal duas ações dessa espécie (ADO nº 10 e nº 11). Tais ações receberam, há mais de dois anos, parecer favorável da Procuradoria-Geral da República, mas até hoje a Ministra relatora ainda não solicitou sua inclusão na pauta de julgamentos.
No tocante ao princípio democrático, solenemente proclamado na abertura do texto constitucional, ocorre idêntica contrafação. Democracia, como expressa o étimo grego da palavra, é o regime em que o poder supremo pertence ao povo, e a mais ninguém.
Ora, nunca vivemos neste país em ambiente minimamente democrático. Debalde procura-se o povo nos principais fastos de nossa História. Ele teima em permanecer ausente, como que privado de palavra. É assim mesmo que Vieira o descreve, no sermão da visitação de Nossa Senhora, pregado por ocasião da chegada à Bahia do Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil, em junho de 1640: “Ut facta est vox salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans. Comecemos por esta última palavra”, propôs o grande pregador. “Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (…) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.
Um século após, outro Vice-Rei, o Marquês do Lavradio, no relatório deixado a seu sucessor, aconselhava-o, tranqüilamente, a “não fazer caso algum das murmurações do povo”.
Na verdade, se a democracia neste país tem sido “um lamentável mal-entendido”, como afirmou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, é porque o espírito capitalista de nossos grupos dominantes percebeu o extraordinário proveito político de revestir nossa tradicional oligarquia com as vestes democráticas, criando a contrafação de um regime de verdadeira soberania popular.
O pressuposto fundamental de funcionamento do sistema democrático é a existência de um mínimo de igualdade social no seio do povo. Ou seja, como salientou Aristóteles ao comentar a realidade política da pólis ateniense, a democracia exige, para funcionar a contento, a predominância majoritária das classes médias.[4] Ora, a sociedade brasileira é, tradicionalmente, uma das mais desiguais do mundo, com uma minoria opulenta dominando a imensa maioria pobre ou miserável. A mínima classe média, salvo raras exceções históricas, sempre se colocou do lado dos oligarcas.
Os longos séculos de escravidão legal fizeram com que, aos olhos de todos, o nosso povo apareça como aquele “vulgo vil sem nome” de que falava Camões, incapaz de qualquer iniciativa útil; devendo, por isso mesmo, ser posto a serviço da camada supostamente competente e ilustrada da população, aquela que costumamos designar, com evidente abuso de linguagem, pelo nome de elite.
Dois exemplos, apenas, bastam para comprovar a triste realidade de nossa pseudodemocracia.
Comecemos pelo principal: o povo brasileiro sempre esteve, e ainda permanece, completamente alheio ao exercício do poder constituinte, o qual representa, na era moderna, a primeira e mais fundamental atribuição da soberania. A Constituição em vigor, como todas as que a precederam, não foi aprovada pelo povo. Ademais, até o presente, o texto constitucional recebeu nada menos do que oitenta e três emendas, sem que o povo, dito soberano, tivesse sequer sido consultado a respeito.
O engodo democrático não se limita a isso. O art. 14 da Constituição, por exemplo, dispõe que a soberania popular será exercida, entre outros instrumentos, mediante plebiscito e referendo. Mas o art. 49, inciso XV vem “corrigir” essa declaração de princípio, determinando ser da competência exclusiva do Congresso Nacional “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, numa interpretação literal, os mandatários do soberano teriam a prerrogativa de permitir ou não a livre manifestação deste!
Inconformado com esse dislate, propus ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados, na profícua gestão de Roberto Antonio Busato como Presidente, um anteprojeto de lei, afastando essa interpretação abusiva do art. 49, XV do texto constitucional, para declarar que tais decisões do Congresso dizem respeito unicamente à regularidade procedimental do plebiscito e do referendo, sem a menor interferência na manifestação soberana da vontade popular. Propus, ainda, que plebiscitos e referendos fossem realizados mediante iniciativa do próprio povo. Tal proposição, apresentada pelo Conselho Federal da OAB à Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, foi transformada no Projeto de Lei nº 4.718/2004, até hoje não levado à votação. Um deputado governista, aliás, apresentou em 2013 um substitutivo ao projeto de lei, para torná-lo praticamente sem efeito.
Nessa mesma linha de atuação, tomei a iniciativa de apresentar, em 5 Estados da federação e 6 Municípios, anteprojetos semelhantes de plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa. Especialmente no Paraná, ofereci em 2005, a esse respeito, um projeto de lei regulamentar da Constituição do Estado e para o Município de Curitiba um projeto de lei regulamentar de sua Lei Orgânica. Escusa dizer que nenhuma dessas iniciativas foi teve seguimento.
Fui ainda mais além nessa linha de defesa da soberania popular. Sugeri a dois senadores a apresentação de uma proposta de emenda constitucional, instituindo o recall, ou referendo revocatório de mandatos eletivos, tal como se pratica há muito na Confederação Helvética e nos Estados Unidos da América do Norte. É a PEC nº 73 de 2005, em tramitação no Senado Federal.
Finalmente, quanto ao princípio fundamental do Estado de Direito, isto é, uma organização política na qual a todo poder corresponde uma responsabilidade de mesmo grau, ele sempre foi falseado entre nós pela ampla aceitação da legitimidade dos privilégios pessoais ou de status.
Já em 1711, em sua obra Cultura e Opulência do Brasil, o Padre Antonil asseverava: “O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”. Pouco mais de meio século depois, em 1764, o Conde da Cunha, 9º Vice-Rei do Brasil, em carta a Sua Majestade, assim se pronunciou: “Nesta terra [ou seja, na Bahia, então sede do vice-reinado] e nas vizinhanças, rara é a casa que não tem privilégio; uma o tem da Santíssima Trindade, outros da Bula da Cruzada, outros o de familiares do Santo Ofício, outros de Santo Antonio de Lisboa, e as maiores famílias, o [privilégio] de moedeiros; estes não só livram os seus filhos do serviço militar, como os seus criados caixeiros, feitores, roceiros, e os que estão adidos aos seus engenhos de açúcar; pelo que, se esta multidão de privilégios se não derrogar, ao menos enquanto não se completarem as tropas, não será possível haver soldados nelas, que não vierem de Portugal”.
Nenhuma surpresa, portanto, se até hoje, nos inúmeros casos de corrupção de agentes públicos por empresários, estes últimos logrem em geral safar-se do processo penal. Nenhuma surpresa, tampouco, no plano judiciário, se os Ministros da nossa mais alta Corte de Justiça gozam de um privilégio de facto, não se submetendo a controle algum no exercício de suas elevadas funções. Ou se o Conselho Nacional de Justiça persiste em sua prática de evitar, a todo custo, a aplicação aos magistrados, mesmo nos casos de graves delitos, da pena de demissão, prevista no art. 42, inciso VI, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Que dizer, então, da permanente duplicidade do Estado Brasileiro no plano das relações internacionais? Enquanto nossos embaixadores timbram em declarar que o Brasil respeita integralmente os direitos humanos, até hoje nenhum de nossos Poderes Públicos, a começar pelo Judiciário, deu cumprimento à sentença condenatória do nosso país, proferida unanimemente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros v. Brasil (Guerrilha do Araguaia), em 24 de novembro de 2010; ou seja, há quase quatro anos. Nessa sentença, a Corte repudiou o acórdão do Supremo Tribunal Federal, proferido na argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, impetrada pelo Conselho Federal da OAB, e declarou “incompatíveis com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos” as disposições de nossa Lei de Anistia de 1979, as quais beneficiam autores de graves violações de direitos humanos.
Diante dessa clamorosa infringência das normas constitucionais e internacionais, tive a honra de subscrever, como advogado de um partido político com representação no Congresso Nacional, a propositura, perante o Supremo Tribunal Federal, da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 320.
Não podemos, pois, nesta altura de nossa evolução histórica, deixar de enfrentar o desafio, e indagar: – Será possível transformar substancialmente a realidade social brasileira, à luz dos princípios fundamentais da República, da Democracia e do Estado de Direito?
Esboço de um modelo de transformação substancial da sociedade brasileira
Entendo que devemos partir do pressuposto básico de que essa transformação radical da nossa sociedade exige, preliminarmente, a conquista, pelo povo, da soberania política efetiva; abolindo-se a usurpação encoberta do poder supremo pelo permanente consórcio dos potentados privados com os principais agentes públicos.
Tal significa reconhecer que tal mudança em profundidade jamais poderá ocorrer de modo subitâneo, sob a forma de uma revolução, como foi de moda sustentar-se até pouco tempo, sobretudo no meio marxista. Em se tratando de mudar a mentalidade coletiva e a estrutura de poderes, consolidadas há séculos no Brasil, não há outro caminho, senão aplicar uma estratégia de longo prazo, e escolher uma ação tática que se concentre nos pontos eticamente indefensáveis do sistema sócio-político em vigor.
Tais pontos são, no meu entender, de um lado, o controle empresarial dos meios de comunicação de massa, pelo qual se influencia decisivamente a mentalidade popular em favor do regime oligárquico; de outro lado, a inexistência efetiva dos grandes instrumentos de democracia direta, a saber, o plebiscito, o referendo e o recall.
Papel da Ordem dos Advogados na transformação da sociedade brasileira
Dito isto, e para concluir, indaguemos de que maneira a OAB pode colaborar nesse processo de transformação substancial da sociedade brasileira.
Conforme declarado expressamente no art. 44 do nosso Estatuto, a Ordem dos Advogados do Brasil é um serviço público. Ora, o adjetivo publicus, -a, -um, em nossa língua matriz, significa aquilo que diz respeito ao povo, ou a ele pertence. A OAB tem, pois, por finalidade maior, servir o povo brasileiro. E esse serviço compreende especificamente, como dispõe o inciso I do mesmo artigo, “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
Escusa dizer que o cumprimento dessa tarefa não admite improvisos. Ele exige, por parte do Conselho Federal e dos Conselhos Estaduais, um mínimo de programação. É o equivalente ao que se denomina política pública, no nível estatal.
Ora, lamentavelmente, esse plano de atividades ou programa de ação, salvo raras e mui honrosas exceções, jamais aparece no funcionamento dos conselhos da OAB. A cada nova eleição, tudo se processa como se nada tivesse sido feito na gestão anterior, e tudo pudesse ser improvisado durante o tempo do novo mandato. Não é, aliás, incomum que o exercício dos cargos na diretoria se faça por interesse puramente personalista, com vistas a uma futura eleição para cargo superior.
Nessas condições, parece-me de grande importância se introduza no Regulamento Geral da OAB, uma disposição, no sentido de que na primeira sessão de um novo mandato, a diretoria apresente à discussão e votação do conselho o seu plano trienal de atuação, com objetivos específicos, visando ao cumprimento dos deveres previstos no art. 44 do Estatuto. O controle da execução desse plano será, então, feito anualmente pelo conselho.
É esta a sugestão que faço agora ao Egrégio Conselho Seccional do Paraná, esperando que ela seja aceita e apresentada ao Egrégio Conselho Federal.
Advogadas e Advogados do Estado do Paraná,
De pé, em defesa da dignidade do Povo Brasileiro!
Curitiba, 15 de agosto de 2014.
*
* Palestra de encerramento da V Conferência Estadual dos Advogados do Paraná
**
** Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, Titular da Medalha Rui Barbosa do Conselho Federal da OAB
[1]
[1] Cf. Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro, 1ª edição, 1958; 3ª edição revista, 2001.
[2]
[2] Cf. José Murilo de Carvalho, I A Construção da Ordem, II Teatro de Sombras, Rio de Janeiro (Editora UFRJ – Relume Dumará), 2ª ed., p. 212.
[3]
[3] História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Monárquico, 5 – Do Império à República, pág. 21.
[4]
[4] Política, 1295 b, 35 e s.
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