Entrevista com Darci Frigo, da ONG Terra de Direitos
21 de Agosto de 2011, 0:00 - sem comentários aindaUm homem do Velho Oeste
Advogado e criador da Terra de Direitos
Hoje na Gazeta do Povo. Por JOÃO PEDRO SCHONARTH E RODOLFO STANCKI
Ele nasceu nas terras do Contestado. Um dia, se encantou com São Francisco. Em outro, assumiu-se como camponês, formou-se em Direito e escreveu seu nome nos movimentos de luta pela reforma agrária
A cunhada do advogado Darci Frigo sempre suspeitou que um dia iria visitá-lo na cadeia. Não era maldade da parenta. O ex-seminarista capuchinho passou mais da metade de seus 49 anos militando pelos direitos de trabalhadores do campo e membros do Movimento Sem Terra, o MST. Difícil listar um capítulo recente da questão agrária no país que não traga impresso o nome de Frigo – hoje ligado à ONG Terra de Direitos, uma rede nacional de apoio jurídico às lutas sociais. Essas andanças, claro, lhe fizeram acumular processos. E pequenas temporadas nas delegacias.
A história de Darci começa numa família de pequenos camponeses do interior de Santa Catarina, passa pelo claustro de um convento e pela turbulenta Teologia da Libertação. Por fim, bate na porta do Centro de Direitos Humanos e na Comissão da Pastoral da Terra, a CPT, organizações onde o militante ganhou estatura e fama.
Em 2001, para tranquilidade da cunhada, a assessoria jurídica dada por Frigo aos pequenos trabalhadores rurais lhe rendeu o Prêmio Robert F. Kennedy, em Washington. O catarinense foi o único brasileiro até hoje a ganhar a homenagem.
Ele hoje vive com a mulher e os dois filhos em um minifúndio com um quintal de 200 m² no bairro Órleans, em Curitiba. A terra – assunto de seu expediente de segunda a sexta-feira –, diz, lhe mantém ocupado também nos fins de semana. Confira edição da entrevista feita num dos prédios antigos da Boca Maldita, onde funciona a Terra de Direitos.
Uma curiosidade: o militante Darci Frigo lida com a enxada?
A maioria dos meus vizinhos colocou cimento em tudo. Mas eu cultivo uma horta no quintal da minha casa e mantenho plantas e árvores. Estou esperando a segunda florada do ipê roxo. Tenho pés de romã, de limão e flores de que gosto muito de cuidar.
As origens rurais ainda calam…
Sim. Sou nascido em Capinzal, hoje município de Ouro, no Meio Oeste de Santa Catarina, à margem direita do Rio do Peixe. É uma região agrícola e colonial, numa área montanhosa. Ali ocorreu a Guerra do Contestado. Meus pais moram lá até hoje. O casamento deles é um dos primeiros entre italianos e alemães na região . Vivi em Capinzal até meus 12 anos.
Antes do advogado dos direitos humanos veio o seminarista Darci. Por que o convento?
Para a família era importantíssimo ter um filho religioso. Além do mais, naquela época a única autoridade que chegava à cidade era o padre. Fui para a ordem dos capuchinhos em 1975. Para fazer os estudos iniciais cursei numa classe multisseriada, daquelas com quatro turmas ao mesmo tempo e uma professora para todos os anos. No convento, além da formação, pude praticar esportes. Sou apaixonado por futebol.
Por qual time torce?
Pelo Atlético [risos], desde que vim para o Paraná, em 1983.
A vida religiosa o marcou muito?
A fase mais interessante da minha vida no seminário foi quando conheci a Teologia da Libertação, já no início dos anos 1980. Essa experiência permitiu que eu me iniciasse na militância. Até então eu não tinha acesso ao debate político. A gente tinha pouco contato com o mundo externo. Eu me sentia limitado no trabalho social. Tinha de me submeter, mas me sentia tolhido e resolvi sair. No ano de 1984, em Ponta Grossa, soube do funcionamento de um Centro de Direitos Humanos na cidade. Foi minha primeira grande oportunidade pastoral.
Lembra de alguma das primeiras lutas em especial?
Em 1986, soube no Centro de Direitos Humanos que havia a possibilidade de despejo de famílias da fazenda de Cavernoso, na região de Cantagalo. Seria um dos primeiros despejos dos agricultores ligados ao MST, que ainda estava se formando. Por causa desse episódio, me envolvi na luta pela reforma agrária. Naquele momento, igualmente, redescobri minha origem camponesa, de onde vim, e me engajei na Comissão da Pastoral da Terra, a CPT…
Caminho sem volta…
Desde que reencontrei minha identidade camponesa, nem passa pela minha cabeça deixar de fazer esse trabalho. Além do mais, logo aconteceu um episódio que marcou minha vida. Algumas mães foram procurar o Centro de Direitos Humanos porque os filhos delas tinham sido levados para fazer roçada em uma fazenda entre Cerro Azul e Bocaiuva do Sul. Descobrimos trabalho escravo lá…
Esse episódio marcou uma batalha judicial…
O Centro de Assessoria, Pesquisa e Planejamento fazia o projeto de reflorestamento e contratava garotos em Ponta Grossa para o plantio de pinus. Os meninos passavam frio e não tinham cama para dormir. Os capatazes estavam sempre armados. Era uma jornada extensa combinada com a escravidão, pois a turma era obrigada a consumir tudo na fazenda, desde equipamentos até comida, naquele esquema de ficar devendo e nunca mais conseguir sair. Mas um deles conseguiu. E foi ao Centro de Direitos Humanos…
E você acabou processado…
Fizemos a denúncia. O problema foi na hora de apurar. A polícia disse não ter achado vestígio. Mas o que não encontrou foi o toco onde ficaram amarradas as correntes. O trabalho escravo moderno tem outros contornos. Eu sofri um processo, que se estendeu por longos anos.
Você chegou a ser condenado a um ano de prisão…
Fui condenado, mas depois o Tribunal diminuiu a pena, estabelecendo o fim do processo. O grave é saber que ninguém jamais apurou a responsabilidade do que aconteceu àqueles jovens.
Como nasce o Frigo da CPT?
Comecei organizando pequenos agricultores na região metropolitana de Curitiba, para que conhecessem seus direitos. Mas a experiência mais interessante se deu em âmbito nacional, ao me envolver no combate aos latifúndios e na defesa dos camponeses. Digo que foi quando eu conheci de fato a desigualdade do Brasil.
Essa história o levou à Praça Nossa Senhora de Salete, em Curitiba. Vamos falar disso?
Foi no final do ano de 1999 para 2000 [quando da ocupação do MST na Praça Nossa Senhora da Salete]. Fui de madrugada ajudar os agricultores que estavam sendo despejados. Fui chamado como advogado porque algumas pessoas estavam sendo presas. A polícia não permitiu que a gente entrasse e acabei sendo detido. No dia em que saí da prisão, uma cunhada, que acompanhava minha militância, disse: “Eu sabia que um dia iria tirar você da cadeia”. [risos]
Qual foi a acusação?
Na delegacia disseram que eu tinha quebrado a perna de um policial. E nos jornais saiu que eu tinha batido na perna do PM com um pedaço de pau. A situação ficou muito grave. Recebi ameaças. Se eu saísse de casa: quebrariam minhas pernas, nunca mais andaria. Durante 45 dias recebi proteção da Polícia Federal. Tempos depois, localizei fotos que provavam que eu não tinha empurrado ninguém. O sujeito que se dizia agredido sequer foi depor e o caso foi arquivado.
O que acha da atuação do MST nos últimos 30 anos?
Acho que o movimento trouxe para o primeiro plano o que sempre ficou invisível. Nestes últimos dias, tivemos o primeiro júri de um pistoleiro pelo assassinato de um trabalhador rural. Quantos trabalhadores, quantos camponeses e quantos posseiros foram assassinados no Paraná? Quem tem ideia? Ao longo dos anos acompanhei mais de três dezenas de assassinatos no estado. Só posso achar que a luta social do MST, do sindicato e da CPT foi fundamental para a democracia brasileira.
O que falta para resolver a questão agrária no Brasil?
Estamos numa encruzilhada. O fato de o Brasil ter nas commodities agrícolas a solução aparente para os seus problemas de balança comercial gera uma propaganda, o que blinda o processo de concentração de terra e de renda no campo. Esse modelo perpetua as desigualdades, mas seu discurso convence até a presidente. Bem, o horizonte da reforma agrária está nos movimentos sociais. Depende deles. É o que penso.
Um partido ou uma ONG? Você fez a segunda opção…
A possibilidade de uma candidatura bateu à minha porta várias vezes. Mas entendi que meu trabalho político devia de ser feito no âmbito da sociedade civil. Nos anos 1990, quando recrudesce a criminalização do MST, começamos a organizar uma rede nacional de advogados populares. É uma iniciativa importante. Precisávamos de uma organização de direitos humanos que desse suporte aos trabalhadores e militantes do campo.
Daí nasceu a Terra de Direitos. “A luta continua”?
Quando comecei na militância, achava que dos anos 1980 para 1990 a questão agrária se resolveria. Mas não. O problema permanece. A terra continua concentrada. Há problemas de trabalho escravo no campo e extrema pobreza. A estrutura de distribuição da terra é desigual e vigora a cultura patrimonialista. Os trabalhadores rurais não são vistos como sujeitos de direito. São tratados como pessoas de segunda categoria.
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Paradoxos da pós-modernidade – Larissa Ramina
21 de Agosto de 2011, 0:00 - sem comentários aindaAo mesmo tempo em que promove o desmantelamento do Estado social, o governo britânico paga a conta dos bancos responsáveis pela crise de 2008, os verdadeiros promotores do colapso no sistema financeiro internacional
Hoje na Gazeta do Povo
Há algo em comum entre a Primavera Árabe e os protestos na terra da rainha. Ambos são, de formas diferentes, produto da crise econômico-financeira que sangra o Estado social desde 2008. As mazelas sociais do neoliberalismo surgem nas ruas na forma de frustração e revolta em face da incerta perspectiva de futuro.
Os distúrbios ocorridos em Londres e outras cidades inglesas no início de agosto não foram protagonizados por criminosos comuns, como pretendem as autoridades ao tentar escapar da complexidade das análises sociológicas. Os envolvidos nas turbulências não eram apenas imigrantes, negros, pobres e excluídos. Trata-se, ao contrário, de uma multidão de frustrados, incluindo estudantes universitários, professores, jovens, desempregados.
A origem dos conflitos está no assassinato de um jovem negro, pela polícia britânica, em Tottenham, uma das regiões mais pobres de Londres. Os protestos, que aparentavam contornos de tensão étnica em um bairro desfavorecido, tiveram suas feições transformadas quando se verificou, além dos enfrentamentos com a polícia, a onda de saques na busca por produtos de grifes famosas e eletrônicos. A tentativa de simplesmente criminalizar o problema pretendeu escapar da discussão de questões ligadas à desigualdade social, à crise econômica, ao desemprego, ao enfraquecimento do Estado, à frustração de não ter acesso ao insustentável padrão de consumo de bens supérfluos, característica do capitalismo. Aqueles que se sentem excluídos do contexto social em que vivem, mediante sentimentos de privação e desempoderamento, de fato afrouxam os laços sociais. O pano de fundo dos distúrbios consiste no mais drástico programa de corte orçamentário da União Europeia, adotado pelo governo de David Cameron, impondo que os impactos da crise econômica e os sacrifícios dela decorrentes sejam desproporcionalmente distribuídos. Ao mesmo tempo em que promove o desmantelamento do Estado social, o governo britânico paga a conta dos bancos responsáveis pela crise de 2008, os verdadeiros promotores do colapso no sistema financeiro internacional.
Paralelamente, no maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália, que abriga mais de 30 mil refugiados internos, a debilidade física decorrente da desnutrição faz com que, na maior parte do tempo, o choro das crianças seja silenciado. Mergulhada na mais brutal seca dos últimos 60 anos, a região do chifre da África reproduz a tragédia de meados da década de 80, quando fotos de crianças etíopes esqueléticas chocaram o mundo. À seca na Somália, somam-se 20 anos de conflito armado e dificuldade de acesso das organizações internacionais. A maior parte do sul do país está sob controle do grupo islâmico radical Al-Shabaab, vinculado à rede terrorista Al-Qaeda, e que combate o governo federal de Transição da Somália, apoiado pela comunidade internacional, para instaurar um Estado muçulmano na região.
Na Europa, que sempre esteve na vanguarda do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, não se trata de miseráveis desnutridos ou de minorias desprovidas de direitos, mas de cidadãos ávidos pela inclusão no acesso às oportunidades e na distribuição da riqueza saqueados pelos especuladores financeiros. No chifre da África, o continente mais explorado, saqueado e injustiçado da história, além dos alimentos e medicamentos que ingressam no país como ajuda humanitária, nem sequer há riqueza a ser distribuída. A maioria dos refugiados somalis que se deslocam até os acampamentos de Mogadíscio, do Quênia e da Etiópia chega lá arrastada pela fome e pela mais absoluta degradação humana.
Larissa Ramina, doutora em Direito Internacional pela USP, é professora da UniBrasil e do UniCuritiba.
Osmar Dias diz que Beto Richa mentiu sobre aumento aos professores
21 de Agosto de 2011, 0:00 - sem comentários aindaEntrevista de hoje na Gazeta do Povo:
Gazeta do Povo: Qual avaliação do governo Richa?
Osmar Dias: Tenho visto o Beto falar muito mal do governo passado. Mas isso não é suficiente para ele cumprir os compromissos que assumiu durante a campanha. Só falar mal do governo passado não basta. Quando eu falo, é porque eu tenho obrigação de falar o que eu penso. Embora ocupando um cargo aqui em Brasília, não deixei de ser paranaense. É preciso que a população tenha em mente as promessas que foram feitas e que ela faça uma avaliação de quanto dessas promessas foram cumpridas. Eu não me esqueci de nenhuma delas.
GP: Tem alguma promessa que acha que já deveria ter sido cumprida?
OD: Ele disse que no dia 2 de janeiro o salário dos professores iria aumentar 26%. Isso foi dito num debate para mim. Talvez eu tenha me esquecido de perguntar o ano. Vamos deixar só nessa.
“Colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: é a treva!” – Maria da Conceição Tavares
20 de Agosto de 2011, 0:00 - sem comentários ainda“Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”, diz a economista Maria da Conceição Tavares, em entrevista à Carta Maior. E adverte: “Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, arrastado, latejante. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal; mas e daí? São eles que estão no comando, ou será o quê esse arrocho fiscal nos EUA enfiado pelo Tea Party na goela do Obama? Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva!”
Por Saul Leblon (entrevista com Maria da Conceição Tavares no Carta Maior)
As manifestações mórbidas de ortodoxia fiscal nos EUA e, antes, o martírio inútil da Grécia, mas também as rebeliões de indignação que tomam as ruas do mundo, em contraste com o alarme sangrento da intolerância neonazista vindo da Noruega, romperam uma blindagem de opacidade e resignação que revestia a crise mundial.
Depois de anos de abordagem asséptica por parte dos governos, e do tratamento complacente e obsequioso desfrutado na mídia, causas e conseqüências da débâcle mais ruidosa do capitalismo desde 1929 adquirem progressiva transparência.
Arcado sob um vácuo de liderança assustador, os EUA de Obama e do Tea Party, mas também a Europa da rendição socialdemocrata, expõem a dimensão política da crise, que realimenta seu impasse econômico.
Nos confrontos de rua entre uma população desesperada e um poder político de representatividade dissolvente, desnuda-se a brutal incompatibilidade entre os mercados financeiros desregulados e os valores da democracia. Na ascendência do Tea Party, pautando um arrocho ortodoxo que joga o planeta às portas de uma Depressão, desaba a confiabilidade na democracia norte-americana que se transforma em fator de insegurança mundial.
A conversa fiada dos centuriões midiáticos que durante o ciclo neoliberal venderam o peixe podre, segundo o qual, democracia e laissez-faire selvagem são personas indissociáveis do capitalismo desregulado, derreteu. Da poça de desilusão escorre um veio de discernimento que se espalha aos poucos pelas praças do mundo: a crise só será efetivamente superada com uma democracia reinventada pela participação popular.
O movimento não se completa, todavia, apesar da truculência incomum, porque a explosão carece, ainda, daqueles atores dos quais se espera , historicamente, a expressão organizada e programática do conflito social: os partidos políticos, mais especificamente, as legendas alinhadas ao campo da esquerda.
Tal vazio afirma a natureza verdadeiramente sistêmica da atual crise, cujo atributo não se restringe ao colapso do corpo econômico de uma época. A crise paradoxalmente trouxe a política de volta porque nenhuma solução de mercado resolverá os impasses causados por ele e por seus mitos.
Essa singularidade não passa desapercebida pelos que se debruçam, como sempre se debruçaram, na análise das crises e impasses do sistema capitalista em busca de respostas progressistas para o presente e o futuro do desenvolvimento brasileiro. Entre as mais importantes contribuições desse indispensável engajamento intelectual está a voz da professora Maria da Conceição Tavares.
Em março deste ano, quando Obama se preparava para aterrissar no Brasil, em meio a confetes e serpentinas de uma mídia obsequiosa, a narrativa dominante saltitava ao som de um novo samba enredo.
Um esforço coreográfico enorme procurava convencer o distinto público sobre a veracidade de algumas fantasias e adereços. A saber: a viagem era um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte; a visita selaria um a nova agenda, ‘uma reconciliação’ entre Brasília e Washington ancorada em concessões e acordos expressivos; Obama seria o paradigma de uma modernidade a ser seguida por Dilma, distinta do ‘populismo’ político e econômico da ‘escumalha’ latinoamericana –ele usa twitter, é cool, não gosta de Lula, nem de Chávez.
Em entrevista à Carta Maior algumas horas antes daquela prometida apoteose que, como é sabido, redundou em fiasco, a professora Maria da Conceição Tavares aspergiu certeiras bisnagas de realismo sobre o entrudo inebriado. E avisou: “Obama não tem nada a nos oferecer. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. A sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada.”E arrematou: “Obama foi anulado pelo conservadorismo de bordel da direita norte-americana”.
Carta Maior voltou a conversar agora com a economista a quem todos ligam quando o mundo despenca e é preciso saber para que lado ir. E é isso que o mundo está fazendo há dias, metafórica e financeiramente: despencando.
A extrema direita republicana pautou Obama, como Conceição havia antevisto; asfixiou a política fiscal da maior economia do planeta. O anúncio de cortes de gastos públicos da ordem de US$ 2,4 trilhões de dólares sobre um metabolismo econômico combalido, equivale a ordenar aos mercados que imitem o Barão de Munchausen e se ergam pelos próprios cabelos. O Barão de Munchausen era um contador de lorotas. Só a convicção colegial desastrosa do Tea Party no laissez-faire – cujo equivalente nativo é a mídia e seus consultores – pode inspirar-se nas metáforas capilares do velho Barão para pautar os destinos da economia e da sociedade.
Os mercados sabem que a coisa não funciona assim. Investidores e especuladores urbi et orbi farejaram o desastre e se anteciparam fugindo em massa de ações e títulos, candidatos a perder o valor de face na recessão em curso.
Antes de atender Carta Maior, a professora Maria da Conceição já havia recebido telefonemas de Brasília, com a mesma inquieatação: ‘E agora?’.
A decana dos economistas brasileiros entende de crise. Ela nasceu em abril de 1930, poucos meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo a riqueza especulativa a pó e pânico. Em questão de horas.
A voz rouca de quem viveu e estudou todas as demais crises do capitalismo no século XXI, vai logo avisando: “Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”.
Maria da Conceição faz uma pausa para para advertir em seguida: “Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, arrastado, latejante. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal; mas e daí? São eles que estão no comando, ou será o quê esse arrocho fiscal nos EUA enfiado pelo Tea Party na goela do Obama? Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva!’ , desabafa a professora que recém passou por uma cirurgia delicada, tenta moderar a voz e a contundência, mas seu nome é Maria da Conceição Tavares. Bem, ela reforça o torque satisfeita com a síntese enunciada e sublinha, inclemente: ‘É a treva!’
A professora de reconhecida bagagem intelectual, respeitada mesmo pelos que divergem de seus pontos de vista, normalmente prefere não avançar na reflexão política e ideológica. Mas neste caso insiste: ‘Não é um fascismo explícito, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo – e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror de um vazio político de onde emergem as criaturas do Tea Party e coisas assemelhadas na Europa. Não há ruptura na crise, mas sim, permanência e aprofundamento. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século XIX, do que do crack de 1929”.
A seguir, trechos da conversa de Maria da Conceição Tavares com Carta Maior:
Carta Maior – No caso do Brasil, no que esta crise difere da de 2008 que superamos rapidamente? Dá para usar a mesma receita de então?
Maria da Conceição Tavares— “É muito difícil (suspira). Primeiro, pela natureza arrastada, enrustida desse longo crepúsculo. Você fica a tomar medidas pontuais. Tenta mitigar a questão do câmbio para evitar a concorrência predatória das importações. Mas tem efeito limitado. Voce aperta os controles aqui, mas o dólar está derretendo lá fora. Está derretendo sob o peso da recessão e do imobilismo político de quem deveria tomar as rédeas da situação. O Brasil não tem como impedir que o dólar derreta no sistema financeiro mundial.
CM—Isso foi diferente em 2008…
MCT—Em 2008 nós tivemos um efeito oposto; capitais em fuga migraram de várias partes do mundo, de filiais de bancos e multinacionais, para socorrer a quebra das matrizes na Europa e nos EUA. Então o que houve ali foi uma desvalorização cambial; o Real ficou mais fraco. Isso facilitou as coisas pelo lado das exportações e da contenção de importações, ainda que quase tenha levado à breca aqueles que especulavam contra a moeda brasileira, fazendo hedge fictício para ganhar na desvalorização. Mas do ponto de vista macroeconômico foi um quadro mais favorável. Hoje é o inverso.
CM – As reservas atuais, da ordem de US$ 340 bilhões são um alento?
MCT—Também há diferenças desfavoráveis nas contas externas. As reservas hoje são basicamente formadas pela conta de capitais; não tanto pelo superávit comercial, como era então. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Sobretudo, tenho receio porque uma parte considerável desse ingresso é dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita – e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático. Essa contabilidade hoje por certo é mais grave do que o passivo em hedge que quase quebrou grandes grupos brasileiros em 2008.
CM – Então a margem de manobra do governo Dilma é menor?
MCT - (suspira) Estávamos melhor antes. E muito do que fizemos então não dá para fazer agora…
CM—Mas o governo pode…
MCT— O governo Dilma poderá agir de forma distinta e contundente se a crise virar o Rubicão; aí tudo é lícito e possível.
CM – Por exemplo?
MCT - Por exemplo centralizar o câmbio; controlar importações, remessas etc.
CM— E enquanto isso não ocorre?
MCT - Mas enquanto se arrasta assim, uma crise enrustida, que vai minando, desagregando, sem ser confrontada, fica difícil. Você toma medidas pontuais que se dissolvem.
CM – Há uma superposição de colapso do neoliberalismo com esfarelamento político que realimenta e reproduz o processo?
MCT - Veja, é um colapso empírico da agenda do neoliberalismo. Avulta que a coisa é um desastre e os meus colegas economistas dessa cepa, espero, devem estar conscientes disso. Mas que poder tem os economistas? Nenhum. O poder que conta está nas em outras mãos, a dos responsáveis pela crise. Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. Meu Deus, o que é isso que estão fazendo nos EUA? É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo.
CM—Devemos nos preparar para uma crise longa?
MCT—Sem dúvida. Por conta dessa dimensão autofágica que não enseja um desdobramento político à altura, que inaugure um novo ciclo, como foi com Roosevelt e o New Deal em 29.
CM—As bases sociais do New Deal não existem mais nos EUA?
MCT - Não existem mais. Obama é o reflexo disso. É uma liderança intrinsecamente frouxa. Não tem a impulsão trabalhista e progressista que sustentou o New Deal. É frouxo. Seu eleitorado é difuso ah, ótimo, ele se comunica com os eleitores pelo twitter, etc. E aí? É uma força difusa, desorganizada, estruturalmente à margem do poder. Está fora do poder efetivo no Congresso que é da direita, dos ricos, dos grandes bancos e grandes corporações, como vimos agora no desenho do pacote fiscal. Está fora da indústria também que foi para a China. Esse limbo estrutural é o Obama. Ele pode até ser reeleito, tomara que seja. A alternativa é amedrontadora. Mas isso não mudará a sua natureza frouxa.
CM— Se não existe o componente político que assemelhe essa crise a de 1929, então o que é isso, essa’ treva’ que estamos vivendo?
MCT— (ri) Uma treva é uma treva… O que passamos agora é distinto de tudo o que se viu em 29…Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, como eu disse. Arrastado, latejante, sob o tacão de forças como essas dos ultra-neoliberais. Tampouco é um fascismo explícito, porém, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo, e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror; um vazio político de onde emergem essas criaturas dos EUA, e coisas assemelhadas na Europa. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século XIX…
CM- O declínio de um império, como foi o declínio do poder da Inglaterra no final século XIX?
MCT—Sim, é um quadro mais próximo daquele. O poder inglês foi sendo contrastado por nações com industrialização mais moderna. Um arranjo com estrutura de integração superior entre a indústria e o capital financeiro e que aos poucos ultrapassaria a hegemonia inglesa. Foi uma quebra, uma inflexão entre o capitalismo concorrencial e o capitalismo monopolista. A Inglaterra que havia sido a ‘fábrica do mundo’ perdeu o posto para o agigantamento fabril americano e alemão. Isso se arrastou por décadas. Foi uma Depressão, a primeira Depressão que tivemos no capitalismo (durou de 1873 a 1918). Levou à Primeira Guerra, que resultou na Segunda…
CM—Os EUA são a Inglaterra da nossa longa crise… E o novo hegemon?
MCT - As forças que se articularam na sociedade norte-americana, basicamente forças conservadoras, de um reacionarismo profundo, não em condições de produzir uma nova hegemonia propositiva. Claro, eles tem as armas de guerra. Não é pouco, como temos visto. Vão se impor assim por mais tempo. Mas daí não sai um novo hegemon. Vamos caminhar para um poder multilateral, negociado, sujeito a contrapesos que nos livrarão de coisas desse tipo, como a ascendência do Tea Party nos EUA. Uma minoria que irradia a treva para o mundo.