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Feliz Dia do Médico

19 de Outubro de 2009, 0:00 , por Software Livre Brasil - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Eu acho piegas e meio sem sentido as pessoas que escrevem exaltando a própria profissão. Ontem foi dia do Médico e vimos uma saraivada de médicos em condições diferenciadas e reconhecidas professando as dificuldades por que passaram e passam e entoando mantras como “ser médico é sacerdócio” e tantos outros que ouvimos vez por outra. Adivinhem: eu sou médico… e a coisa não é bem assim…

Todos os anos se repete o padrão: perguntam para os médicos mais afortunados o que é ser médico, e o que representa ser médico nos dias de hoje, e as respostas não variam muito no espectro que vai do sacerdócio à poesia. Embora eu compartilhe de muitas dessas visões, insisto que elas só servem para “consumo interno”, e serviriam melhor se fossem guardadas para si, e não proferidas aos quatro ventos. Penso que é um desserviço que esses médicos prestam aos seus semelhantes… “Se medicina é um sacerdócio, vamos tratá-los como padres” é o que pensam os que contratam os médicos, ou seja, com remuneração capuchinha e os mantendo em permanente serviço… em missão. (Na realidade, um padre tem “ajuda de custo” paga pela diocese e que varia conforme a paróquia. Infelizmente não encontrei nada oficial a respeito, mas informações não oficiais trazem valores na ordem de R$ 2.000,00 – sem dedução de impostos, já que não se trata de salário).

Não quero ofender aos que professam essas coisas, muitos dos quais admiro tanto profissional quanto pessoalmente… Mas por que não perguntam para os médicos menos afortunados a mesma coisa? Talvez por que não gostem do que esses tenham a dizer? Talvez porque uma jornada de trabalho extenuante associada a uma remuneração completamente incompatível mantida por algum tempo seja o suficiente para destruir o poeta dentro de cada médico…

Começou a circular em 2003 (a referência mais antiga que tenho é do jornal da Sociedade Brasileira de Cardiologia) um texto que comparava, em Natal/RN, a evolução dos honorários dos médicos com a dos Promotores Públicos. Na época, o autor do texto reclamava que o médico recebia R$ 755,00 (3,14 vezes o salário mínimo) e um promotor público, R$ 8.000,00 (33,33 vezes). Passados 6 anos, melhorou muito! Hoje os médicos recebem R$ 2.000,00 (4,3 vezes) enquanto os promotores públicos, R$ 14.507,19 – inicialmente (31,19 vezes). Nesse ritmo, os médicos e os promores públicos do RN deverão ganhar a mesma coisa lá por 2060! Que avanço!

Tratar de remuneração é fácil e objetivo: os números são frios e qualquer adolescente do ensino médio tem ferramentas para analisá-los (talvez não a experiência para interpretá-los, mas isso é outra história)... Mas não quero tratar só de remuneração… Sem dúvida a medicina tem suas peculiaridades. Tratar com o ser humano doente, enquanto a maioria das profissões trata com o ser humano sadio, não é para qualquer um. Sem dúvida é uma vocação. Concordo com a opinião de um de meus mestres: “Formar um médico é como formar um filósofo”, mas acho que vai além: um filósofo capaz de apoiar o ser humano nos piores momentos de sua vida orgânica, no momento da dor e do sofrimento. Algumas pessoas poderão dizer que existem momentos piores do que esses… na minha humilde opinião, essas pessoas nunca passaram pelos momentos extremos que fazem parte do cotidiano de nossos pacientes.

É verdade que a medicina avançou muito e está em um período particularmente interessante, com avanços em ritmo quase exponencial. Mas com cada avanço, as áreas não cobertas por conhecimento sólido acabam crescendo também, a medida que descobrimos nuances ainda desconhecidos previamente. No entanto, nunca o que aprendemos na faculdade foi mais verdade do que hoje: “Se puderes curar, cura; se não puderes curar, alivia; se não puderes aliviar, consola.”. Nisso se resume a real missão do médico: um pacto inequívoco com o paciente… o médico sempre tem algo a fazer, seja curar, aliviar ou consolar.

Com isso em mente, qualquer pessoa que acredita que saúde se compra está cometendo um erro filosófico grave: está dizendo que os abastados tem mais direito a saúde do que os desafortunados. Ora… a aplicação desse pacto entre médico e paciente não varia de acordo com as condições financeiras do último (ou não deveria), mas varia conforme as do primeiro (infelizmente). Na velocidade pós-moderna de transformação do conhecimento, um médico que recebe uma remuneração que permita uma educação continuada, uma situação familiar e social confortável (sem preocupações), necessidades básicas satisfeitas e tenha uma jornada de trabalho que permita pensar em cada paciente (ao invés de funcionar no “modo automático”) pode mover-se no espectro desse pacto entre consolar e aliviar, ou entre aliviar e curar!

Em última instância, é interesse da sociedade ter médicos bem remunerados. No entanto, a sociedade caminha no sentido oposto: pulveriza as faculdades médicas em nome de interesses comerciais, aumentando o número de vagas, azeitando a “linha de produção” de médicos que acabam em um mercado competitivo, aceitando remunerações vis que, acabam por piorar a própria capacidade de honrar a aplicação daquele pacto. A sociedade entende que temos médicos inaptos e responde criando mais faculdades e o ciclo vicioso está formado, alimentando-se do próprio monstro que criou e sendo alimentado por ele.

Mas aí entram convênios, governos e sistemas de saúde… cada um com o seu próprio conjunto de interesses. Olhando para esses interesses fica cada vez mais difícil acreditar que tenham entrado nessa história do lado dos médicos e pacientes… Mais provável que estejam do seu próprio lado, os convênios forçando cada vez mais trabalho em menos tempo para aumentar seu lucro; os governos usando a saúde como moeda de troca por votos e a falta de regulamentação da profissão como forma de controle dos profissionais; e os sistemas de saúde obrigando pacientes a intermináveis filas para atendimento, às vezes ativamente atuando contra uma maior eficiência.

Aquele texto de 2003 circula até hoje nos emails dos médicos (eu sempre recebo uma ou duas cópias nessa época do ano), invariavelmente adicionado a um chamado a ação, a um chamado para a união dos médicos bonzinhos contra os interesses mauzinhos de convênios, governos e sistemas de saúde. Eu acho tal chamado completamente ineficiente. Os advogados de tal chamado invertem o que propõe o autor original com a ilusão de que é preciso construir um “grande movimento nacional” e então partir para ação… é justamente o contrário! Temos de mudar as pequenas coisas do nosso dia-a-dia, olhando sempre para como melhor podemos exercer a nossa profissão e mostrar para os que nos administram que estamos certos naquele pequeno e específico ponto. Acaba que, fazendo isso, estamos exatamente construindo um “grande movimento nacional”, só que do Jeito Certo™: de baixo para cima.


Fonte: http://www.nardol.org/2009/10/19/feliz-dia-do-medico

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