Katia Brandão Cavalcanti
Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas conexões epistemológicas e metodológicas para reconhecer o Jogo de Areia como uma estratégia ludopoiética no âmbito educacional e para a pesquisa do lazer, evidenciando a sua organização transdisciplinar. Concebemos o Jogo de Areia com determinadas propriedades intrínsecas, cujo movimento faz emergir uma natureza transdisciplinar específica. Assim, o Jogo de Areia idealizado originalmente para a Clínica Psiquiátrica Infantil, evoluindo depois para a Psicologia Junguiana, pode se abrir ao mundo transdisciplinar para diferentes campos de atuação profissional, ressaltando a sua relevância para os estudos vivenciais do lazer. A Transdisciplinaridade nos permite ir além de configurações teóricas consolidadas, navegar por oceanos de incertezas epistemológicas e cruzar arquipélagos disciplinares, alguns já conhecidos, outros ainda desconhecidos.
Palavras-Chave: Jogo de Areia – Transdisciplinaridade - Ludopoiese
THE SANDPLAY AND TRANSDISCIPLINARITY:
DEVELOPING LUDOPOIETIC APPROACHES FOR
EDUCATION AND LEISURE RESEARCH
Abstract
This articles aims at presenting some epistemological and methodological connections to recognize the Sandplay as a ludopoietic strategy in the educational environment and in leisure research, highlighting its transdisciplinary organization. We have conceived the Sandplay as having some intrinsic properties, whose movement engenders a specific transdisciplinar nature. So, the Sandplay was originally created for Children’s Psychiatric Clinic; later, it evolved into Jungian Psychology and it has then opened to the transdisciplinary world for different fields of professional action, emphasizing its relevance in leisure experiencing studies. Transdisciplinarity has allowed us to go beyond consolidated theoretical settings, navigating through oceans of epistemological uncertainties and crossing disciplinary archipelagos, some of which are already known, others, unknown.
Key words: Sandplay – Transdisciplinarity - Ludopoiesis
- Introdução
Os estudos da corporeidade que estão sendo desenvolvidos na Linha de Pesquisa Corporeidade e Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN têm se inspirado na metáfora da Teia de Aranha que apresenta nos seus três primeiros raios a ludicidade, a criatividade e a sensibilidade. A partir do primeiro raio lançado formando a borda superior que representa a reflexividade autobiográfica e depois dos três raios centrais constituindo uma triangulação vivencial – lúdica, criativa e sensível, as bordas laterais e inferior propiciam a sustentabilidade epistemológica da teia de aranha representando a reflexividade vivencial. Os demais raios que se expandem do centro para as bordas representam diferentes áreas de conhecimento que dialogam com a corporeidade. O processo de construção do conhecimento nesse sistema metafórico é realizado de modo espiralado, do interior para o exterior, indicando a nossa perspectiva recursiva – a humanescência. Do humano para o humano!
A nossa abordagem para o estudo da corporeidade é transdisciplinar. No processo de formação dos educadores-pesquisadores na Pós-Graduação em Educação da UFRN a perspectiva adotada está em sintonia com o Artigo 11 da Carta da Transdisciplinaridade quando ressalta que a educação transdisciplinar deve valorizar “o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos”. Dessa forma, o Sandplay – Jogo de Areia constitui uma ferramenta metodológica tanto para a intervenção educativa como para o processo investigativo, assumindo um caráter transdisciplinar. O Jogo de Areia foi originalmente concebido no contexto da psicoterapia, porém caracteriza-se essencialmente como um instrumento criativo para apoiar as intervenções que buscam o desenvolvimento humano, o processo de individuação (KALFF, 2003, 1990).
O Jogo de Areia como um método terapêutico foi desenvolvido por Dora Kalff a partir da “World Technique” de Margaret Lowenfeld, na Inglaterra; do “World Test” de Charlotte Bühler, na Alemanha; e do “Erica Method” de Gösta Harding e Allis Danielson, na Suécia (AMMANN, 2004).
Estelle Weinrib, responsável por levar o Jogo de Areia para a América, destaca que foram as tribos mais primitivas que desenhavam na terra círculos mágicos protetores os verdadeiros precursores da prática terapêutica na caixa de areia. A própria areia é reconhecida por suas propriedades curativas: a pessoa absorve a energia positiva da areia enquanto a areia absorve a energia negativa da pessoa. (WEINRIB, 1993).
A caixa de areia como abordagem terapêutica foi concebida por Margaret Lowenfeld que começou a utilizá-la em 1929, publicando em 1935 o livro que apresentava o desenvolvimento de sua técnica: “World Techniques - Play in Childhood”. Psiquiatra freudiana, ela atribuiu a inspiração da sua abordagem ao livro Floor Games de Herbert George Wells, publicado em 1911 (LOWENFELD, 1999; WELLS, 2006).
Em 1956, em viagem a Zurique para proferir palestra sobre suas Técnicas de Mundo, Margaret Lowenfeld encontrou a analista junguiana Dora Kalff que, entusiasmada pela nova abordagem terapêutica e incentivada por Jung, decidiu ir para Londres estudar e trabalhar com Lowenfeld e outros pesquisadores como M. Fordham e D. Winnicott. Quando retornou à Suíça, Dora Kalff iniciou o seu trabalho com crianças usando a simbologia junguiana e desenvolvendo sua própria versão para a Terapia do Jogo de Areia. Adotou a hipótese básica de Jung de que há na psique humana um impulso fundamental em direção à totalidade e à cura. Assim, para alcançar o seu propósito terapêutico decidiu dar ao paciente “um espaço livre e protegido”, aceitando-o incondicionalmente e observando-o sem emitir julgamentos, deixando fluir a intervenção terapêutica somente por suas próprias observações e intuições (KALFF, 1980). Tal abordagem é bem semelhante ao método dos sonhos adotado por Jung:
[...] confiar incondicionalmente naquilo que contassem sobre eles mesmos. [...] De onde vem essa imagem? Das respostas e associações apresentadas por eles, as interpretações decorriam naturalmente. Deixando de lado qualquer ponto de vista teórico, apenas os ajudava a compreender por si mesmos suas imagens (JUNG, 2002, p. 152).
Os desenvolvimentos teóricos para o Jogo de Areia têm uma forte marca da orientação junguiana. Em sua autobiografia, Jung narra o importante papel do resgate da ludicidade na sua vida pessoal e profissional. Após o seu rompimento com Freud, Jung começou a viver um período de “incerteza interior” e de “desorientação”:
Eu me sentia flutuando, pois ainda não encontrara minha própria posição. O que mais almejava nesse momento era adquirir uma nova atitude em relação aos meus doentes [...] Os sonhos de então impressionavam-me muito, mas não me ajudavam a superar o sentimento de perplexidade que se apoderava de mim. Pelo contrário, eu vivia como sob o domínio de uma pressão interna [...] Abandonei-me assim, conscientemente, ao impulso do inconsciente (JUNG, 2002, pp. 152-154).
Entregando-se ao seu inconsciente, Jung observou que a primeira imagem que se produziu foi a lembrança de infância, entre seus 10 e 12 anos, quando se envolvia apaixonadamente com os brinquedos de construção. Na sua narrativa autobiográfica, destaca que durante muitos anos aquelas construções lhe fascinavam e que para sua surpresa, aquela lembrança “emergia acompanhada de uma certa emoção”. Foi então que ouviu o seu próprio coração:
‘Ah, ah! Disse para mim mesmo, aqui há vida! O garoto anda por perto e possui uma vida criativa que me falta. Mas como chegar a ela?’ Parecia-me impossível que o homem adulto transpusesse a distância entre o presente e o décimo primeiro ano de vida. Se eu quisesse, entretanto, restabelecer o contato com essa época de minha vida, só me restava voltar a ela acolhendo outra vez a criança que então se entregava aos brinquedos infantis (JUNG, 2002, pp. 154-155).
Aqui temos um forte argumento junguiano vivenciado pelo próprio criador da Teoria dos Arquétipos sobre o valor da memória lúdica corporalizada como fator que impulsiona a própria ludicidade humana. Tal reconhecimento e aceitação para Jung não se mostrou uma coisa fácil, pelo contrário, foi um processo muito doloroso:
Esse momento marcou um ponto crucial no meu destino. Só me abandonei a tais brincadeiras depois de repulsões infinitas com um sentimento de extrema resignação e experimentando a dolorosa humilhação de não poder fazer outra coisa senão brincar. Pus-me então a colecionar pedras, trazendo-as da beira do lago ou de dentro d’água; depois comecei a construir casinhas, um castelo, uma cidade (JUNG, 2002, p. 155).
O compulsório envolvimento de Jung com o Jogo de Areia permitiu que a porta da ludicidade permanecesse aberta para as suas idas e vindas nos intervalos do seu trabalho terapêutico. Então, narra com entusiasmo as suas construções com pedras que recolhia das margens do lago próximo à sua casa:
Todos os dias depois do almoço, se o tempo permitia, eu me entregava ao brinquedo de construção. Mal terminava a refeição “brincava” até o momento em que os doentes começavam a chegar; à tarde, se meu trabalho tivesse terminado a tempo, voltava às construções. Com isso meus pensamentos se tornavam mais claros e conseguia aprender de modo mais preciso fantasias das quais até então vivera apenas um vago pressentimento. Naturalmente, eu cogitava acerca da significação dos meus jogos e perguntava a mim mesmo: “Para falar a verdade, o que fazes?” [...] Eu não sabia o que responder, mas tinha a íntima certeza de trilhar o caminho que levava ao meu mito. [...] Situações desse tipo repetiam-se na minha vida. Sempre que me sentia bloqueado, em períodos posteriores, eu pintava ou esculpia uma pedra: tratava-se sempre de um rite d’entrée que trazia pensamentos e trabalhos (JUNG, 2002, p. 155).
2. O Jogo de Areia e a Educação Transdisciplinar
A ludicidade na vida do adulto por si mesmo já é uma temática contraditória. Quando a trazemos para o ambiente vivencial da Pós-Graduação em Educação continua parecendo estranha ao convívio com a produção de conhecimento de mestrandos e doutorandos. Esquecemos que nos estudos da extraordinariedade de Gardner (1999, 1996) a contínua dialética entre as experiencialidades comuns da infância e os complexos desafios de um mundo intelectual bem articulado contribuem decisivamente para produções geniais, como no caso de Einstein.
Há três anos estamos nos dedicando a sistematização do uso do Jogo de Areia como estratégia vivencial no processo de ensino-aprendizagem da Pós-Graduação em Educação e como técnica de pesquisa que complementa entrevistas e outras abordagens para a construção de dados subjetivos.
A Caixa de Areia, campo concreto para a vivência do Jogo de Areia, foi idealizada por Margaret Lowenfeld com as seguintes dimensões: aproximadamente 75 x 50 x 7 cm, revestida internamente com plástico ou metal azul, de modo a se tornar impermeabilizada para permitir o uso de areia e água para a modelagem. Uma coleção de miniaturas deve ser disponibilizada para a construção dos cenários nas caixas de areia, diversificando ao máximo as temáticas universais e multiculturais. Implementos para a modelagem da areia, outros materiais para composição de personagens, elementos da natureza e da vida urbana devem ser incluídos para fazer fluir a imaginação daquele que entra no jogo de construir imagens na areia.
O Jogo de Areia, conforme a abordagem junguiana, tem como foco central o conceito do “espaço livre e protegido”, tanto em suas dimensões físicas como psicológicas. Conforme Weinrib (1993, p. 37) descreve,
[...] o elemento físico do espaço livre e protegido é a natureza concreta da técnica da caixa-de-areia. A idéia de proteção implica a limitação da liberdade. Por si só, a natureza da técnica da caixa-de-areia oferece liberdade e proteção (limitação). [...] A segurança psicológica decorre da atmosfera protegida da situação terapêutica. O paciente realmente recebe aceitação incondicional, pois não há confronto, nem intelectualização e nem interpretação.
Educadores-pesquisadores que se interessam pelo estudo da corporeidade no PPGED/UFRN têm conhecimento da nossa abordagem com a Pedagogia Vivencial Humanescente e então já chegam abertos às novas experiencialidades que valorizam a ludicidade, a criatividade e a sensibilidade para o fluir da humanescência.
Como Jung e Gardner defendem, a ludicidade é fundamental para o processo de produção do conhecimento, da criação científica extraordinária. Adotar o Jogo de Areia como estratégia educativa e técnica de pesquisa tem sido bastante enriquecedor para todos que comungam com a Base de Pesquisa Corporeidade e Educação dos seus referenciais teóricos em permanente processo de ressignificação.
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas conexões epistemológicas e metodológicas para poder reconhecer o Jogo de Areia como uma estratégia ludopoiética no âmbito educacional e para a pesquisa do lazer, evidenciando a sua organização transdisciplinar. Buscamos apoio no Artigo III da Carta da Transdisciplinaridade para articular argumentos epistemológicos que possibilitam conceber o Jogo de Areia com determinadas propriedades intrínsecas, cujo movimento faz emergir uma natureza transdisciplinar específica. Assim, o Jogo de Areia idealizado originalmente para a Clínica Psiquiátrica Infantil, evoluindo depois para a Psicologia Junguiana, pode se abrir ao mundo transdisciplinar para diferentes campos de atuação profissional, ressaltando a sua relevância para os estudos vivenciais do lazer. A Transdisciplinaridade nos permite ir além de configurações teóricas consolidadas, navegar por oceanos de incertezas epistemológicas e cruzar arquipélagos disciplinares, alguns já conhecidos, outros ainda desconhecidos:
A Transdisciplinaridade é complementar da aproximação disciplinar; ela faz emergir da confrontação das disciplinas novos dados que as articulam entre si e que nos dão uma nova visão da natureza da realidade. A Transdisciplinaridade não procura a dominação de várias disciplinas, mas a abertura de todas as disciplinas ao que as atravessa e as ultrapassa.
A divulgação do Jogo de Areia no Brasil teve inicio com a publicação do livro de Estella Weinrib - Imagens do Self: O processo terapêutico na caixa-de-areia, em 1993, dez anos depois de sua primeira publicação nos Estados Unidos. Em breve apresentação do seu livro, destaca a autora a sua surpresa com as propriedades intrínsecas do Jogo de Areia:
[...] Mais tarde, após anos de estudos com Kalff, incorporei a caixa-de-areia à minha prática analítica e descobri que por si só ela acelera e aprofunda o processo terapêutico. Provou ser uma abordagem terapêutica insubstituível sobre a qual ainda não se sabe o suficiente (WEINRIB, 1993, p. 13).
No prefácio do livro, Dora Kalff ressalta que a autora escreveu uma obra valiosa sobre a Terapia na Caixa de Areia, elucidando idéias importantes para a compreensão de sua aplicação. Utiliza-se de um caso para comentar sobre os aspectos teóricos e práticos do Jogo de Areia. Da sua descrição como terapeuta, Kalff (1993, p. 15) destaca que
Ela consegue realmente participar desses acontecimentos e criar um espaço favorável para o seu surgimento e transformação. Ela é capaz, ao mesmo tempo, de oferecer uma interpretação consistente e convincente do material, sem ser dogmática.
Outra referência decisiva para o desenvolvimento do Jogo de Areia no Brasil cabe a Ruth Ammann que, dez anos depois de publicar em alemão sua obra sobre o Jogo de Areia, visitou o Brasil em 1999 para participar de um Simpósio sobre a Natureza e Simbologia do Feminino, apresentando o tema” A Pesquisa com o Jogo de Areia” (FRANCO e BATISTA PINTO, 2003). Formada inicialmente em arquitetura, Ruth Ammann procurou unir a Psicologia à Arquitetura, buscando o significado dos espaços e dos ambientes construídos em função do desenvolvimento psicológico das pessoas. Em 2002, a autora veio ao Brasil novamente para o lançamento do seu livro “A Terapia do Jogo de Areia: Imagens que curam a alma e desenvolvem a personalidade”. Para ela, “quem brinca na caixa de areia, seja adulto, seja criança, cria várias imagens tridimensionais na areia, envolvendo-se nesse processo com corpo, alma e espírito” (AMMANN, 2004, p. 11).
A partir daí, o caminho para a concepção transdisciplinar do Jogo de Areia estava totalmente aberto. Várias pesquisas estão sendo desenvolvidas no Brasil, destacando-se aquelas conduzidas por Scoz (2000); Batista Pinto (2003); Ramalho (2002). Nossos estudos com o Jogo de Areia começaram a ser sistematizados a partir de 2005, encontrando-se em várias publicações de Mestrandos e Doutorandos em Educação da UFRN.
3. O Jogo de Areia: Ludopoiese e Educação para o Lazer
A nossa abordagem transdisciplinar para o Jogo de Areia parte dos estudos da Corporeidade (CAVALCANTI, 2008) que se associa à Teoria da Autopoiese (MATURANA e VARELA, 1997) e à Teoria dos Arquétipos (JUNG, 1991). Jogar é viver e viver é jogar. Joga-se com o corpo, com a alma! Da conexão entre a Teia da Corporeidade e a Autopoiese surgiu a concepção da ludicidade como sistema autopoiético, cujo fenômeno emergente corresponde à dinâmica das respectivas propriedades que constituem a sua organização específica: a Ludopoiese. A culminância desse processo de emergência da pulsão lúdica viva, da alegria de viver com plenitude e beleza é a Ludescência que pode irradiar esta energia própria da ludicidade humana para o próprio sujeito, que de forma recursiva alimenta a própria fonte e ao mesmo tempo expande esta luminosidade da alegria de viver para o seu entorno, para todos os seres a sua volta.
A ludicidade humana como sistema autopoiético foi concebida metaforicamente como uma flor de cinco pétalas, representando cada uma delas uma propriedade específica do sistema ludopoiético: autotelia; autoterritorialidade; autoconectividade; autovalia e autofruição.
A autotelia é a propriedade da ludicidade humana que a define como uma vivência que tem um fim em si mesmo, voltada para a própria subjetividade de cada um, traduzindo escolhas, desejos que refletem autonomia e autodeterminação de uma expressividade humana no tempo presente.
A autoterritorialidade refere-se à propriedade da ludicidade humana de ocorrer em espaço-tempo autodelimitado, constituindo assim o campo de jogo que propicia concretizar desejos vivenciais de criação e expressão de si mesmo por si mesmo.
A autoconectividade representa a propriedade do envolvimento e da implicabilidade do ser consigo mesmo para poder se conectar como personalidade criadora com os outros e com o mundo. Isto significa reconhecer o papel fundamental da autoconsciência e da corporeidade no mundo das relações ecopoiéticas, ou seja, refere-se à capacidade de conexão com os outros sistemas autopoiéticos.
A autovalia diz respeito à gratuidade, ao valor atribuído pelo sujeito às suas escolhas lúdicas. É a própria subjetividade humana responsável por determinar o valor das vivências lúdicas para a criação e a recriação de si mesmo, para a sua alegria de viver. A ludicidade humana não se manifesta como valor de troca mercantilizado pela cultura de consumo. O valor do usufruto do lúdico constitui um autovalor, devendo ser definido pelo próprio sujeito.
A autofruição significa o estado vivencial de prazer e alegria como meta a ser alcançada pelo sujeito na realização de seus desejos ludopoiéticos de expressão de si mesmo por si mesmo como vivência plena da alegria de viver.
No centro da flor, articulando essas propriedades específicas do sistema ludopoiético – a autotelia, a autoterritorialidade, a autoconectividade, a autovalia e a autofruição, está a energia do amor à vida, representada pelas emoções e sentimentos do encontro entre o masculino e o feminino (DAMÁSIO, 2004). Os estames e os pistilos da flor expressam toda a sua complexidade e diversidade de formas do viver para gerar mais vida. Assim, no centro da ludopoiese, num espaço protegido pelas pétalas que estruturam a singularidade subjetiva da vivência ludopoiética surge o fenômeno da arquetipoiese pela união entre anima e animus. A energia feminina da anima identifica-se com a atitude intra-vivencial da imaginação, do devaneio. A energia masculina do animus identifica-se com a sua atitude inter-vivencial da ousadia, da incerteza da aventura humana,
O fenômeno da arquetipoiese no centro do sistema ludopoiético irá privilegiar a noção de alma e sua respectiva correspondência imagética. Para tanto, buscamos reconhecer uma Fenomenologia Arquetípica a partir da Psicologia Arquetípica de James Hillman para fundamentar a abordagem transdisciplinar para o Jogo de Areia.
Para Hillman (1992), o propósito da Psicologia Arquetípica é ir além da pesquisa clínica, situando-se dentro da cultura da imaginação ocidental, conectando-se às artes e à história das idéias. Para o autor, o termo arquétipo pertence a toda a cultura, a todas as formas de atividade humana e não somente aos terapeutas. Assim, a Psicologia Arquetípica pode ser considerada como um movimento cultural à medida que reconhece o arquétipo sempre como fenomenológico.
A imagem é vida, é vivência. Uma imagem não é aquilo que se vê, mas o modo como se vê. Na imagem está implicado o ato de imaginar. Qualquer imagem pode ser considerada um arquétipo, pois dela emerge um valor. Trata-se de uma emergência imagética vivida em busca de sentido. A imagem é uma presença que afeta!
O Jogo de Areia como um jogo de construção de imagens é um jogo que afeta, que cria afeto. Imagens de si. Imagens da vida. Imagens de beleza. Obras de Arte da Vida! Relembrando Schiller, cabe dizer que o homem somente deve jogar com a beleza e somente com a beleza deve jogar. A plenitude humana também está implicada na própria beleza da vida. O poeta do lúdico nos advertia também que o homem só joga quando é pleno e somente é pleno quando joga (SCHILLER, 1995). Dessa forma, a ludicidade, a beleza e a plenitude jogam o mesmo jogo da criação e da recriação da vida, portanto, jogam um Jogo Poiético.
Jogo de Areia, Jogo Poiético! Jogo que é vida, que cria e que recria a vida a partir de imagens, de cenários vivos e vividos pela imaginação, revelando sutilezas profundas da subjetividade humana. Como um jogo que permite a ludopoiese na sua organização fundamental, podemos então identificar as suas propriedades ludopoiéticas que se estruturam metaforicamente numa flor. O seu núcleo central, produtor e reprodutor de imagens através do fenômeno da arquetipoiese, faz emergir as emoções e os sentimentos da imaginação e da incerteza no processo de construção, desconstrução e reconstrução dos cenários de vida na caixa de areia.
O Jogo de Areia traz uma possibilidade de beleza para a Formação Humana Ludopoiética. Nesse jogo, “amar e brincar” como fundamentos do humano não podem cair no esquecimento (MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2004). A beleza precisa reencontrar o seu lugar na educação e a autoformação humanescente apresenta-se como uma perspectiva. Trabalhar com imagens significa cultivar a alma poeticamente com a beleza. Hillman (1992, p. 39), ao refletir sobre as idéias de Edward Casey com relação à imagem e ao tempo, ressalta que “o verdadeiro trabalho com imagem não apenas dá um sentido de tempo para a alma, ou faz de eventos temporais eventos de alma, mas também cria tempo na alma”. Enfatiza o autor que:
A vida se mostra como imagem antes mesmo de haver uma história de vida. Ela pede primeiramente para ser vista. Mesmo se cada imagem estiver prenhe de significados e sujeita a uma análise minuciosa, se pularmos para o significado sem apreciar a imagem, teremos perdido um prazer que não pode ser recuperado nem pela melhor das interpretações. Teremos também tirado o prazer da vida que estamos contemplando. A exibição de sua beleza torna-se irrelevante para o seu significado (HILLMAN, 2001, p. 47).
Trazer o Jogo de Areia para o palco da transdisciplinaridade significa poder vivenciá-lo em toda a sua plenitude imagética. Significa poder celebrar o lazer e a vida com mais beleza!
Referências
AMMANN, Ruth. A terapia do jogo de areia. Imagens que curam a alma e desenvolvem a personalidade. Trad. Marion Serpa. São Paulo: Paulus, 2004.
CAVALCANTI, Katia Brandão. Comunicação pessoal. Seminário de Pesquisa BACOR-PPGED/UFRN, 8 de julho de 2008.
DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: Prazer e dor na ciência dos sentimentos. Adaptação para o português do Brasil: Laura Teixeira Motta.São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
FRANCO, Aicil e BATISTA PINTO, Elizabeth. O mágico jogo de areia em pesquisa. Psicologia USP, 2003,14(2), 91-114.
FREITAS, Lima de; MORIN, Edgar; NICOLESCU, Basarab. Carta da Transdisciplinaridade, Arrábida,Portugal, 1994.
GARDNER, Howard. Mentes extraordinárias. Perfis de 4 pessoas excepcionais e um estudo sobre o extraordinário de cada um de nós. Trad.Gilson B. Soares. Rio de Janeiro: Rocco, 1999
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HILLMAN, James. O código do ser. Uma busca do caráter e da vocação pessoal. Trad. Lúcia Rosenberg e Gustavo Barcellos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. Um breve relato. Trad. Lúcia Rosenberg e Gustavo Barcellos. São Paulo : Cultrix, 1992.
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JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. 22ª ed. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
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WELLS, Herbert George. Floor games. Alexandria, VA: Skirmisher, 2006.
*Publicado na revista Licere, 11(3), 2008.
55 comentários
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É só o começo!
Fico feliz por ter lido o artigo e aproveitado para algumas reflexões interessantes. Estamos com uma publicação no prelo na Editora da UFRN, constituída por onze trabalhos de educadores-pesquisadores da Base de Pesquisa Corporeidade e Educação. Tanto no Ateliê como no Seminário da linha de pesquisa da Corporeidade e Educação vamos trabalhar com o Jogo de Areia. Vamos explorar muitas possibilidades...
Um grande abraço,
Katia
FELICITAÇÕES
Textos Maravilhosos
Um abraço. Mercia
LUZ!!!