Uma das minhas principais preocupações como administrador, e como profissional que atua na formação de administradores, é com a natureza do conhecimento trabalhado em nossa área. Ou melhor, com a pertinência e adequação deste conhecimento para práxis. Principalmente em processos que ensejam possíveis novas formas de organizar e que levam à necessidade de novas formas de compreender.
A formação dos administradores está essencialmente atrelada à gestão empresarial, ou, como já falei em outras ocasiões, à tecnologia de gestão empresarial. As práticas, os conceitos, a ideologia, as construções discursivas, tudo está profundamente enraizado no pensamento de desenvolver empresas, que pode ser resumido à criação e manutenção de vantagens competitivas. E assim todos os possíveis significados e práxis da administração acabam sendo reduzidos a esta perspectiva.
A redução da administração à perspectiva empresarial preocupa por dois motivos. Primeiro porque há realidades de gestão em que não faz o mínimo sentido operar nesta lógica. Segundo porque a própria lógica da gestão empresarial parece estar se desgastando, perdendo o fôlego, conforme as pessoas despertam a cada dia para noções como a de comércio justo, economia solidária, autogestão e auto organização.
Neste post me concentro no primeiro motivo, o de que em certas realidades não faz sentido operar com o conhecimento da gestão empresarial. E neste caso a realidade para a qual direciono meu olhar é a das redes auto organizadas. Contexto que propaga-se como novo, com lógicas e características distintas das concepções tradicionais de organização.
Como atuante da rede Meta Reciclagem sempre trabalhei com a ideia de que o conhecimento da administração, preso na camisa de força da perspectiva empresarial, não dá conta dos processos disso que se convencionou chamar de rede auto organizada. Simplesmente porque para isso teríamos que de alguma forma relacionar a MetaReciclagem com uma percepção organizacional que entende a organização como uma entidade, como um macro-ator, como um sistema de fronteiras definidas que opera trocas com um ambiente. Vendo desta forma estaríamos sempre lidando com problemas que se apresentariam em função das limitações do objeto “organização”, das características da organização, das contingências que moldam a estrutura e o desempenho de uma organização.
Mas o próprio conceito de organização enquanto sistema já não anda muito bem na atualidade. Segundo a pesquisadora polonesa Barbara Czarniawska nos dias atuais é fácil perceber que a noção de organização vinculada à teoria de sistemas sofre de uma certa inconsistência. O ambiente não pode ser tido como um tipo de conjunto de problemas pré-existentes dentro dos quais uma organização ou um organismo está inserida. As fronteiras, por exemplo, só podem ser vistas quando pensa-se a “organização” de forma estática. E mesmo no universo empresarial, nos casos de fusões, aquisições, outsourcing, insourcing etc, a idéia de fronteiras se torna frágil.
Para sair da armadilha da organização sistema, entidade, é preciso compreender a organização como um processo contínuo, em permanente construção, sempre incompleto e sendo recriado diariamente. Concepção que forma a base de pensamentos processuais nos estudos organizacionais. Assim, estimulado por algumas discussões que vinham ocorrendo nas últimas semanas na lista metareciclagem, organizei e enviei para a lista uma proposição em torno das distinções entre conceito, rede e lista no caso MetaReciclagem .
Meu e-mail para a lista resultou em algumas interlocuções interessantes, dentre elas: a associação da minha percepção de “repetições” à “repetição” na filosofia de Deleuze; a visualização do “novas iterações” no lugar da “repetição”; a demarcação do que é um conceito; a proposição de que estou falando de “prática articulatória e mais alguns questionamentos e colocações que dá para conferir direto lá na thread.
No texto enviado para a lista, e que retomo aqui com alguns ajustes, parto da afirmação feita pelo Adriano Belisário de que o conceito de MetaReciclagem anda muito bem e o que precisamos é fortalecer a rede. E sigo dizendo que entendo a ideia da distinção entre conceito e rede como uma possibilidade interpretativa e que de certa maneira concordo com essa possibilidade. Por outro lado, com base em meu treinamento recente tento não fazer distinção entre rede e conceito, uma vez que o conceito ( e mais adequado seria dizer os conceitos) compõe as redes.
Ao invés de ver a rede como “uma rede”, “a rede”, talvez seja mais interessante ver que MetaReciclagem circula e forma muitas redes, sempre instáveis, sempre incompletas, sempre em formação. A cada associação em que é evocado um conceito/compreensão/ideia de metareciclagem estão se juntando ali redes para a formação de uma outra re de, insisto, todas instáveis e em mutação contínua.
Nossa proposta de desconferência para o FICD.Br mostra muito claramente essa circulação do conceito. As duas pessoas que aceitaram o desafio de começar a escrever a proposta jamais debateram na lista o conceito de metareciclagem, mesmo assim algum conceito/compreensão/ideia circulante foi convocada para estabilizar uma rede para a desconferência. Esta é apenas uma das redes das diversas redes metareciclagem estabilizadas temporariamente em algum momento para dar conta da interlocução com institucionalidades e com os próprios agentes de formação da rede: conceitos, técnicas, objetos,gente. Tudo agindo, performando uma rede repetidamente, consequentemente lhe dando existência.
A rede existe na repetição da performance de seu componentes, que por outro la do são redes também, estabilizadas em função de uma performance que compõe o desempenho de outras redes. Então os conceitos e as redes metareciclagem nesta perspectiva não podem ser vistos como indo bem separadamente um do outro. Se “o conceito” (que são muitos conceitos) vai bem, o conceito em si é rede e compõe redes, que por extensão vão/estão bem.
E pegando carona na não distinção entre conceito e rede procuro não distinguir também rede de lista. Porque, da mesma forma que os conceitos, as listas compõem as redes. Se aceitarmos o argumento de que as redes são compostas pela associação entre outras redes, a lista MetaReciclagem é a cada mensagem, que pode ser vista como uma rede, uma nova rede. Esta rede que é a lista MetaReciclagem, para a rede digital resumida às rotinas de arquivo e organização de dados dura o tempo da próxima mensagem chegar.
Já para outras associações, extrapolando rotinas e processos eletrônicos, podemos também procurar conexões com a lista metareciclagem. Redes de redes compondo redes. E aí cabe uma pergunta interessante. Como esta percepção se conecta com as “outras redes” do cenário contemporâneo que estão aí sendo colocadas como “novas formas de organizaç ão”?
Uma primeira compreensão possível é a de que a mesma noção de repetição, instabilidade, mutação contínua talvez seja pertinente, com elementos-processos semelhantes mas certamente com outros completamente diferentes. Só que aqui se apresenta mais uma vez a limitação do conhecimento da administração essencialmente atrelado à prática empresarial. É ferramenta sem qualquer utilidade neste universo. Nós os administradores ainda precisamos avançar muito nas formas de compreensão do universo da organização distintos do universo empresarial. As conexões entre as práticas, as redes e o conhecimento da administração estão ainda muito frouxamente articuladas no nosso espaço de formação. Essa discussão simplesmente não chegou ainda, não se colocou como horizonte, não está sendo construída como realidade de operação do administrador. Logo, estamos naquele contexto: se você não vê então isto não existe. Viu?
Nas próximas semanas estarei participando do encontro do MutGamb em Ubatuba-SP e logo em seguida da [Des]conferência.MetaRec>Tecendo Redes no FICD.Br no Rio de Janeiro. Espero ali estar em criações, recriações, repetições de conexões, práticas articulatórias que nos ajudem a avançar neste sentido da práxis da administração no contexto dos processos de organização como os da MetaReciclagem, o que eu muito carinhosamente chamo de Práxis MetaAfins.
0sem comentários ainda