A noção inicial era de que as coisas eram feitas de uma maneira bastante espontânea, sem muito planejamento, sem muita formalidade. Mas o que teria possibilitado construir a crença nesta espontaneidade? As construções textuais em torno da metareciclagem? Ingenuidade? Desejo? Importa nomear?
Agora, à primeira vista, sem verificar os textos que de alguma forma orientaram esta visão, busco resgatar um percurso metareciclagem, de como eu cheguei no site, na lista de discussão, até participar de dois encontros presenciais ( uma semana em janeiro de 2009 na Campus Party em São Paulo e quatro dias e em setembro de 2009 no Bailux Party em Arraial da Ajuda – Bahia) com algumas pessoas que se autodenominam “metarecicleiros” e que sempre tenho vontade de grafar como “metarecicleirxs” para arriscar usar noções simbólicas da práxis. Além disso, o fato de de que o que começou como uma pesquisa para se encontrar na práxis continua, atualmente principalmente no mutgamb, me parece requerer apresentar uma auto imagem da minha participação nos processos. Questão de clareza e honestidade para comigo e com os diversos parceiros.
Comecei em 2008 uma pesquisa, até então ainda informal e bancada com recursos próprios, que tinha como objetivo compreender possibilidades de uso da Internet para o que à época foi chamado de “ação social”. Os blogs representavam para mim naquele momento a forma de interação online mais proveitosa para divulgar ideias, estabelecer contato e chegar a novos pensamentos e ações. Eu acreditava que existia um poder nas mídias sociais e neste contexto criei o “netnografando”.
O pouco que eu entendia por netnografia me parecia ser o método mais adequado para a investigação na Internet. Desde o começo o que busquei uma possibilidade de aliar o desenvolvimento de uma pesquisa de doutorado a práticas no contexto Internet e “ação social”. Depois de um tempo vi que a netnografia, na forma como eu a compreendo, é incompatível com uma investigação bacana das coisas que venho observando. Simplesmente porque “netnografia”, na linha do que Kozinets (2002; 2006) propõe, é numa versão lúdica do pensar só mais um instrumento do imaginário que produz imaginário, ou numa versão mais seca e um tanto dura um passo-a-passo de como dar conta do “conhecimento” de seu “aborígene digital” preferido. O “nome” netnografia em si não quer dizer nada. É usado para se referir a pesquisas de orientação etnográfica na Internet de um modo geral, faz menção ao step-by-step do Kozinets, mas não problematiza a própria etnografia, suas crenças e pretensões, seus mitos.Por isso se torna pretensão no mínimo ingênua ou “esperta” (no pior dos sentidos).
O mito do antropólogo que vai ao campo e constrói uma descrição cultural (MALINOWSKI, 1932) migra para o “campo Internet”, como se fosse cultura, mas se esquece pelo menos que trata-se ao mesmo tempo de um artefato cultural, como Hine (2000) efetivamente se dedica a mostrar em seu trabalho, chegando a propor inclusive a não distinção entre espaço online e offline como um dos recursos metodológicos necessários para uma investigação que leve em conta estes dois aspectos simultâneos da Internet, ou seja, cultura e artefato cultural.
Hine (2000) com sua etnografia do e no virtual (virtual ethnography) traz uma orientação que mais se aproxima do que eu vejo hoje que gostaria de alcançar, que é uma abordagem de investigação com uma proposta antropológica de campo, mas sem ilusão de que é possível transportar método de “realidade” para “realidades”. Nesse sentido os questionamentos já começam com as propostas de uma antropologia das ciências (LATOUR, 2000).
Mas, voltando para a questão do fazer metareciclagem. Lembro que foi um pouco chocante quando finalmente numa discussão sobre o site da rede, no Bailux Party , interpretei que existia ali uma alta dose de “planejamento formal”. E mesmo que as pessoas não vejam com esses meus óculos, claro, não quer dizer que isto não exista. Ainda fico me perguntando até hoje porque o choque. Será que eu vinha querendo fugir de um mundo que está aí, uma discursividade que está aí estabelecida, estabelecendo, em estabelecimento, e sendo apropriada diariamente por todos nós?
As racionalidades da gestão estão atuando no nosso dia-a-dia como agentes nas definições de todos os processos. Tudo é de alguma forma administração e administrado. E as ações trazem as cargas do que já no sentido genérico, percepção geral, foi assimilado da administração, ainda que este nome, na forma do que teoricamente costuma se definir, não esteja sendo usado ou conscientemente pensado. Mais ou menos isso.
O que vejo para a administração é que podemos trabalhar em outra sintonia. Entendendo que isto talvez seja uma impossibilidade prática para a certos setores da iniciativa privada como operam atualmente. Mas, ao mesmo tempo, isto é uma necessidade moral paras outros processos de gestão, principalmente aqueles associados às questões públicas.
A questão do público, entretanto, seguindo a orientação que estou assimilando da Actor-Network Theory – ANT, não deveria ser assumida como um macro-ator, um coletivo já estabilizado, um ser artificial no mesmo sentido que o são Estado e outras instituições ditas sociais. Por que não? Porque desconsideram-se os artificios que criam os atores sociais, as entidades estabelecidas, passa-se a buscar as ações e disputas que ocorrem para este estabelecimento. E para reforçar esta perspectiva uma outra se apresenta que me parece ainda mais coerente. Qual seja, a de que se deve ver logo as apropriações e usos dessas racionalidades tradicionais da administração em práticas que se propõem inovadoras do nosso tempo, para aí talvez ver o que sobra de inovador nestas gestões. Mas o que eu gostaria mesmo de ver ou de construir nesse processo? Linhas gerais de orientação para os que vem depois? Orientação para fazer o que?
Uma coisa que me parece importante definir de início é o que eu chamo de “a metareciclagem”. A metareciclagem para mim não é apenas uma rede auto organizada nos moldes que se auto apresenta. É rede no sentido que tem o verbo enredar, mas esse enredamento não é apenas e principalmente de pessoas, há muitos outros elementos socio-ténicos, entidades em disputa, nesse fazer constante de metareciclagem. Metareciclagem é num instante um computador que foi montado de peças que iriam para o lixo, no outro segundo é a metodologia que permite a produção deste computador, para logo em seguida ser a filosofia que orienta a reflexão sobre a produção deste computador e uma série de assuntos que gravitam ao seu redor. Ao mesmo tempo dizer isto é muito limitado, é quase a mesma coisa de querer apreender algo com uma netnografia.
Por fim, quero fechar dizendo que até o parágrafo anterior este texto era apenas um rascunho que estava aqui no wordpress esperando para ser complementado, editado e publicado. Neste momento que estou justamente reconstruindo um percurso, para tentar definir algo do que pode ser minha pesquisa (acadêmica) e como ela se relaciona com a práxis, vim buscar auxílio nos blogs. Não está fácil, tem várias coisas na cabeça ao mesmo tempo. Uma das coisas que ando pensando é que, se eu quiser tentar ver se manifestarem actantes ( noção da semiótica traduzida pela ANT) e como se produzem macro-atores, a rede metareciclagem é apenas um dos macro-atores. Mas, a questão é ver como se produzem macro-atores? Pra quê? Tenho certeza que os indícios do que quero / posso fazer de forma a manter a proposta com a qual comecei tudo isso, que é a de não fazer um trabalho apenas acadêmico, estão por aqui e ali nas coisas que tenho escritas e nas que ainda estão por escrever. Há, há, há, dá até pra rir depois dessa frase. Por isso paro por aqui e volto ao meu exercício de tradução.
Referências
CALLON, Michel.; LATOUR, Bruno. Unscrewing the Big Leviathan: How Actors Macro-structure Reality and How Sociologist Help Them to Do So. In: KNORR-CETINA, K.; CICOUREL, A. (eds.). Advances in Social Theory and Methodology. Boston: Routledge and Keagan Paul, 1981. p. 277-303.
CZARNIAWSKA, Barbara. A theory of organizing. Cheltenham, UK; Northampton, USA: Edward Elgar, 2008.
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1981.
ESCOBAR, Arturo. Whose Knowlege, Whose Nature? Biodiversity Conservation and Social Movements Political Ecology. Journal of Political Ecology. 1999.
ESCOBAR, Arturo. Gender, place and networks: a political ecology of cyberculture. In: SCHECH, S.; HAGGIS, J. (eds.). Development: a cultural studies reader. Oxford: Blackwell, 2002.
ESCOBAR, Arturo. Welcome to Cyberia: Notes on the Anthropology of Cyberculture. Welcome to cyberia: Notes on the anthropology of cyberculture, Current Anthropology, v. 35, n. 3, p. 211-231, 1994.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX, In: SILVA, T. T. (org.). Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: Sage, 2000.
KOZINETS, Robert V. The Field behind the Screen: Using Netnography for Marketing Research in Online Communities. Journal of Marketing Research, v. 39, n. 1, p. 61-72, feb. 2002.
KOZINETS, Robert V. Netnography 2.0 In: BELK, Russell W. (Ed.). Handbook of qualitative research methods in marketing. Northampton, MA: Edward Elgar, 2006.
LATOUR, Bruno.; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2000.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Ed. 34, 1994.
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network Theory. Oxford, New York: Oxford Universty Press, 2005.
LATOUR, Bruno. What’s organizing? A meditation on the bust of Emilio Bootme in praise of Jim Taylor. Palestra ministrada na Universidade de Montreal em 21 de maio de 2008. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=TZkJg1HsvRs>. Acesso em: 16 jan. 2010
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts of the Western Pacific: an account of native enterprise and adventure in the archipelagoes of Melanesian New Guinea. 2nd impression. London: George Routledge & Sons, 1932.
Related articles
- Brazilian Cyberpunk (wired.com)
0sem comentários ainda