As redes sociais vem fazendo um carnaval nesta última semana a partir da notícia veiculada pela Folha de S. Paulo de que o MinC aprovou o projeto O Mundo Precisa de Poesia, blog de R$ 1,3 milhão em que a cantora baiana Maria Bethânia irá recitar poesias em vídeos dirigidos por Andrucha Waddington, da produtora Conspiração Filmes. No Twitter, o tema virou alvo de chacota dos usuários. Muita gente pedindo R$ 1 milhão para montar um blog, alguns amadores avisando que topam trabalhar de graça e outros, como o apresentador Milton Neves, criticando a feiúra da Bethânia.
As chacotas em si não merecem comentários, até porque se feiúra fosse critério para alguma coisa Vampeta não teria sido jogador de futebol, Sarney não poderia ter sido presidente e Milton Neves jamais seria apresentador de televisão. O que precisa ser discutido é a Lei Rouanet em si e as falhas já apontadas pela gestão anterior do Ministério da Cultura.
O MinC, durante a era Juca Ferreira, levantou a necessidade de reforma da legislação, destacando, entre outros argumentos, a concentração dos recursos nas mãos de poucos proponentes (sobretudo no Rio e em São Paulo). Pela proposta de reforma do MinC, o mecenato, modalidade de incentivo em que empresas destinam parte do imposto de renda para projetos aprovados pelo ministério (caso de Bethânia), perderia importância para o Fundo Nacional de Cultura. Com a mudança, a maioria dos recursos sairia direto do caixa do governo para os executores dos projetos, queimando a etapa em que, segundo definição do cineasta porto-alegrense Jorge Furtado, o artista precisa se humilhar batendo de porta em porta das grandes empresas mendigando patrocínio.
Logo que a bola da reforma foi levantada, muita gente apareceu para sair descendo a lenha na proposta. O blog paulista Cultura e Mercado, do produtor Leonardo Brant, por exemplo, esperneou o quanto pode, sustentando a tese de que o governo estaria preparando o campo para o “dirigismo cultural”, por meio do qual destinaria as verbas da cultura a criadores amigos dos ocupantes do poder.
A tese foi comprada por outros interessados no tema. A revista Época de 18 de abril de 2009, por exemplo, se negou a aceitar a reforma, dizendo que o governo queria “revogar” a lei Rouanet ao invés de reformá-la. Os argumentos da revista eram esdrúxulos e podem ser facilmente desconstruídos por qualquer leitor minimamente bem informado. A matéria alega que “foi o dinheiro da renúncia fiscal que permitiu trazer ao país superproduções como os espetáculos da companhia canadense Cirque du Soleil”, como se fosse obrigação do governo federal sustentar um evento cujo ingresso custa quase o valor integral de um salário mínimo.
Ainda segundo a reportagem, a lei é boa porque “as empresas podem fazer propaganda de suas marcas usando recursos que seriam destinados à Receita Federal”. Ou seja, segundo a publicação da editora Globo, é obrigação do governo pagar pela propaganda de megacorporações privadas que decidam patrocinar eventos culturais destinados à classe A. Imaginem se esta fosse a premissa da gestão pública em outras áreas: o governo federal bancaria hospitais particulares que cobram uma fortuna por consultas e cirurgias ou sustentaria escolas privadas para famílias abastadas que podem bancar mensalidades abusivas. É óbvio que não faz o menor sentido.
Mas como o negócio da imprensa é puramente gastar papel para inventar polêmicas ao invés de informar o leitor, a mesma revista Época resolveu se contradizer e atacar a aprovação do projeto de Maria Bethânia, apontando algumas falhas na lei Rouanet, como o fato de que ela “favorece mais os produtores que o público”. Desta vez mais contida, a publicação aponta a estimativa de que um blog como o de Bethânia custaria em torno de R$ 100 mil pelos valores de mercado.
O valor do projeto de Maria Bethânia parece realmente ser alto, ainda mais se for levada em consideração a nova informação de que o cachê da cantora pela direção artística do projeto é de R$ 60 mil por mês. Esse valor, sozinho, é o mesmo que cada Ponto de Cultura recebe por ano do governo federal para bancar uma série de atividades culturais de base.
No entanto, a gente pode ir mais fundo na questão. O blog do Dennis Oliveira, colunista da revista Fórum, argumentou com razão de que a questão em si não é propriamente o blog de Maria Bethânia ou seus valores, mas sim a legislação e a necessidade de reforma, com uma política pública de cultura transparente, democrática e democratizante.
Projetos acima de R$ 1 milhão não são raros no universo da lei Rouanet, como pode ser observado na relação de projetos aprovados pela 184ª plenária da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), a mesma que aprovou a proposta da Bethânia. Circuitos teatrais, festivais de música e artes cênicas e circulação de espetáculos são exemplos de projetos que recebem autorização para captar grandes recursos. Normalmente, não se consegue arrecadar todo o montante autorizado e os orçamentos precisam se adequar ao patrocínio oferecido.
No fim das contas, quem decide o projeto que vai ou não ser executado é o conjunto das empresas patrocinadoras, que terminam por praticar o dirigismo cultural tão criticado. Não é por acaso que existem empresas especializadas em redação, aprovação e captação de recursos para terceiros, que vivem quase que exclusivamente da lei Rouanet e dos impostos que os empresários deixam de pagar e que, por conta disso, não querem largar o osso das verbas públicas para nenhum tipo de reforma.
Na mesma 184ª reunião da CNIC, foram aprovados R$ 560 milhões em renúncia fiscal para projetos culturais. Sem desmerecer as propostas contempladas pela comissão, vale destacar que o mesmo valor, se investido no programa Cultura Viva, poderia criar mais de 3 mil Pontos de Cultura espalhados pelo País, talvez até zerando o número de municípios brasileiros sem atividades culturais financiadas e garantindo o sonho de uma rede capilarizada e democrática.
Em 2010, segundo a Época, a lei Rouanet resultou em R$ 1,1 bilhão investidos em projetos culturais. A estimativa do ex-ministro Juca Ferreira era de que, com a reforma, o Fundo Nacional de Cultura tivesse uma injeção de 70% desse montante. Ou seja, o orçamento disponível para a pasta, que hoje é de R$ 2,2 bilhões, teria um acréscimo de 30% para a execução de políticas públicas. Esse novo recurso poderia contornar os vícios de mercado do mecenato, como a concentração dos patrocínios mal distribuído geograficamente enas mãos de poucos artistas e produtores.
Esta discussão tem que prosseguir. A reforma cultural é necessária e a lei Rouanet é apenas um ponto do que precisa ser feito. O caso do blog da Maria Bethânia já serviu para reanimar a discussão, que estava fora da pauta.
0sem comentários ainda