Já ficou claro pelas últimas postagens que defendo a diversidade de softwares como garantia da liberdade na internet. Quanto mais opções de escolha para executar tarefas em nossos computadores tivermos, maior é a garantia de privacidade, rapidez e segurança. Mais programas disponíveis representam mais ideias, mais inovação, mas soluções para problemas semelhantes. Melhor ainda se as opções estiverem no campo do software livre.
Nestes últimos dias estive pesquisando sobre sistemas operacionais realmente alternativos. Ressalto o termo realmente porque, no mercado de SO’s, o Linux e o Mac OS não podem ser considerados alternativos, visto que já tem uma rodagem considerável e contam com um grande número de usuários e comunidades fiéis à filosofia de seus projetos. O Linux conta, inclusive, com apoio de governos e grandes empresas, que investem no sistema visando economia de custos com software.
Pesquisando e lendo sobre o assunto em blogs e wikis por aí, encontro uma boa variedade de projetos de sistemas operacionais open source, a maioria ainda em fase de concepção. O FreeBSD, que tem um mascote aterrorizador de criancinhas, parece ser o mais desenvolvido. Trata-se de um sistema com uma comunidade de entusiastas visivelmente rival dos geeks pró-Linux. O ponto forte, defende a comunidade, é a segurança e a estabilidade. Assim como o Linux, é bastante utilizado em servidores e empresas que prezam pela solidez das informações armazendas.
Outro sistema ainda embrionário que tem uma certa ambição é o ReactOS, criado com a simples missão de servir como clone do Windows. Para isso, ele está sendo desenvolvido para rodar arquivos executáveis, o que, de quebra, acaba incluindo vírus e trojans, os grandes males do sistema do Bill Gates. A base do ReactOS é a versão NT do Windows, do início da década passada. Segundo os clonadores, o Windows não mudou muito de lá para cá, o que permite que o sistema rode os programas das versões XP, Vista e 7.
Mas o sistema operacional open source que realmente parece vir para colaborar com nós, reles usuários mortais desarmados de artimanhas de códigos de programadores, atende pelo nome de Haiku. Para falar mais sobre ele, é preciso contar uma historinha que remonta à década de 1990. Naquela época, a Apple não era a coqueluche dos usuários moderninhos e era considerada fracassada na briga com a Microsoft. Um executivo da Apple criou então, a partir do zero, um novo sistema operacional, batizado de BeOS, com o objetivo de ser incorporado aos computadores da marca da maçã.
A estratégia deu errado. A Apple não entrou em acordo pela compra dos direitos da novidade e seus criadores fundaram uma nova empresa, oferecendo o BeOS a consumidores finais e vendendo máquinas com o novo sistema. O negócio, no entanto, não foi para a frente e a Be Inc acabou entrando na justiça contra a Microsoft por práticas monopolistas, num processo que acabou em acordo extra-judicial. Em 2001, o BeOS foi descontinuado após a venda do código-fonte para a empresa Palm.
Acontece que o BeOS era um excelente sistema operacional, voltado para o usuário final e com foco em multimídia. Deixou para trás algumas centenas de fãs, que se tornaram viúvas do jovem sistema. Para não deixar esse sistema morrer, os admiradores se juntaram e resolveram reeditar o BeOS do zero, trabalhando para relançá-lo como software livre com o nome de Haiku (a alcunha é referência ao modelo de poesia japonês de três versos).
A empreitada já dura dez anos. Não é simples o processo de reescrever voluntariamente um sistema operacional inteiro. Mas os resultados estão sendo animadores. As primeiras versões alfa (voltada para curiosos e pesquisadores que querem testar a novidade) foram disponibilizadas no site do projeto. Resolvi baixar e testar uma versão usando o VirtualBox, programa que simula uma máquina virtual dentro do Windows.
O que pude ver é que o Haiku tem uma grande diferença em relação ao Linux: enquanto no sistema do pingüim tudo parece que precisa de código para ser executado (basta ver os tutoriais nerds espalhados pela rede), no Haiku tudo é gráfico. O visual é o mesmo do antigo BeOS, mas ainda parece ser mais atual do que algumas versões Linux, como o Ubuntu. Consegui, já de cara, acessar a internet, conferir novidades na Viraminas, ler e-mail, tuitar, assistir vídeos do Memória.doc, abrir fotos em alta resolução e ouvir músicas em mp3:
Uma das coisas que mais me interessou no Haiku foi a facilidade de uso, ao contrário do que encontrei nas primeiras vezes que tive de lidar com o Linux. Sem dúvida, o fato de ser pensado para atender a usuários comuns e não a programadores ou servidores web traz uma grande diferença.
Embora esteja visivelmente em fase inicial de desenvolvimento, o projeto pode ser uma novidade no meio open-source, sobretudo no que diz respeito a multimídia. O Linux não é um sistema com aptidão para edição de vídeo, por exemplo, e as soluções existentes são capengas e instáveis, embora bem intencionadas. O Haiku pode vir suprir esta demanda, inclusive servindo de referência para projetos como Pontos de Cultura.
Interessado que fiquei no sistema, procurei um dos programadores responsáveis pelo projeto, o brasileiro Bruno Albuquerque, engenheiro do Google em Belo Horizonte. Ele respondeu a algumas perguntas por e-mail:
No que a chegada do Haiku pode contribuir para o panorama atual do mercado de softwares livres?
Em seu estágio atual, o Haiku não é um competidor direto dos sistemas operacionais existentes. É preciso se ter em mente que o mesmo é, basicamente, um projeto de pesquisa (embora seja um bem sólido e avançado). Isto posto, uma das coisas que sempre procuramos fazer com o Haiku e que é considerávelmente diferente do que se costuma ver em outros sistemas operacionais existentes é o fato de que todas as decisões de engenharia no projeto são tomadas com base na noção de que a resposta ao usuário é a coisa mais importante.
O Haiku pretende ser voltado para consumidores finais ou será um sistema voltado para curiosos e “viúvas” do BeOS? Qual é o público-alvo do projeto?
O objetivo final é criar um excelente sistema operacional para desktops em geral. Hoje, o mesmo é mais interessante para desenvolvedores, pesquisadores e curiosos.
O Haiku é o mesmo BeOS de dez anos atrás ou é um novo sistema com a mesma cara? O que ele traz de novidade em relação ao sistema original?
De forma simplificada, o Haiku é o BeOS reescrito em forma de código aberto. Seguimos a mesma filosofia original do BeOS e, pra versão R1, mantemos compatibilidade com programas desenvolvidos para o mesmo. Mas as semelhanças param por aí. O Haiku atual é bem mais moderno do que o BeOS foi um dia, suporta mais hardware, tem um interface mais moderna, novas APIs para desenvolvimento e, também, uma série de outras melhorias em todos os componentes do sistema operacional.
Você acredita que o Haiku tem cacife para suprir a demanda de soluções multimídia open-source, como edição de áudio e vídeo?
Tecnicamente, sim. Mas um sistema operacional usado para uma tarefa específica só vai ser tão bom quanto as ferramentas para execução dessa tarefa existentes para o mesmo. Em termos gerais, portar soluções de multimídia do Linux para o Haiku é factível (embora não seja trivial) e o resultado seria, muito provavelmente, melhor do que a solução original no Linux (assumindo que o port seja feito usando-se recursos providos pelo Haiku sempre que possível).
Como você enxerga as políticas públicas brasileiras de apoio ao software livre?
Ainda temos bastante espaço para avançar nas políticas públicas relacionadas a software livre, mas não tenho a menor dúvida que o trabalho feito pelo governo anterior (e que eu imagine vá ser continuado pelo atual) tenha sido excepcional.
Como o projeto Haiku se mantém? Quem são os colaboradores e patrocinadores?
O Haiku é mantido por uma entidade sem fins lucrativos chamada Haiku Inc., com sede nos EUA. Eu, inclusive, sou vice-presidente da mesma. 100% dos recursos para manutenção do projeto vem de doações dos mais variados locais do mundo. Essas doações pagam a infraestrutura do projeto (site, repositório) e, de vez em quando, um ou outro engenheiro para desenvolver uma tarefa específica. Desenvolvedores domundo todo também contribuem seu tempo para o projeto, desenvolvendo o mesmo. O Google também ajuda o projeto através do Google Summer of Code, pagando estudantes para trabalhar no mesmo.
Existe alguma participação do Google no projeto?
Fora o GSoC, o fato de que eu trabalho no Google e de que existem outros engenheiros do Google envolvidos de uma forma ou de outra com o projeto, não.
Existe um calendário de desenvolvimento do Haiku? Alguma previsão para a versão 1.0?
“Quando estiver pronto”. o R1 está chegando, mas sendo um projeto tocado por voluntários, é difícil dizer com qualquer precisão quando isso deve ocorrer. Pode ser 1 mês, 1 ano ou 1 século. Depende do ânimo e tempo dos desenvolvedores.
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