Sono, pesadelos e apartheid
Por Gerivaldo Neiva*
O conselheiro do CNJ, Ives Gandra Martins Filho, negou o pedido liminar contra as portarias que estabeleceram o toque de recolher de adolescentes em algumas cidades do Brasil, sob alegação de que a “experiência está demonstrando o caráter salutar das medidas adotadas, devolvendo o sono aos pais e contribuindo para a não deformação dos jovens, em defesa de seu próprio interesse". Disse ainda o conselheiro, segundo notícia no site do CNJ, que o “direito de ir e vir do menor não é absoluto.”
Sendo assim, segundo o conselheiro, o sono dos pais tem mais valor do que o Estatuto da Criança e do Adolescente, do que a Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e vale mais ainda do que o próprio Estado Democrático de Direito. Confira...
Sendo assim, segundo o conselheiro, os jovens não são mais formados em escolas de qualidade, mas são proibidos de circularem livremente para que não se deformem, ou seja, a deformação é como uma doença contagiosa que se contrai nas ruas e não por ausência de políticas públicas de formação e acolhimento dos jovens.
Sendo assim, por fim, segundo o conselheiro, o “menor” não é pessoa humana e nem cidadão, pois seu direito de ir e vir não é absoluto...
Aliás, quem são esses pais que agora podem dormir e quem são esses jovens que se “deformam” nas ruas e, portanto, não podem ter como absoluto o direito de ir e vir?
Certamente não tem como nome de família “Gandra Martins”, mas “dos Santos” ou “de Jesus” ou não se lembra...
Certamente não estão nas pizzarias e restaurantes das cidades ou nos carros que param nos semáforos, mas à espera de uma fatia de pizza enquanto “guardam” os carros ou fazendo malabarismo no sinal fechado à espera de uma moeda.
De fato, os pais desses adolescentes precisam dormir, pois precisam acordar às 4h e levar mais duas horas de ônibus e de trem para chegar ao batente. Não sabem a dimensão política e nem jurídica, mas estão de acordo com o apartheid, digo, toque de recolher, imposto aos seus filhos.
Esses pais podem até dormir em paz, mas para o sono eterno de tantos quantos deram a própria vida pela liberdade e pela democracia, ferir a Constituição e as conquistas históricas da humanidade para esconder as mazelas de uma sociedade baseada no consumo e na exploração é um verdadeiro pesadelo.
Eu não quero a falsa tranquilidade desse sono. Prefiro ficar acordado!
*Gerivaldo Neiva (foto) é Juiz de Direito da Comarca de Conceição do Coité
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