Sempre que vamos à casa de um dos entrevistados, fazemos de tudo para que o mesmo fique à vontade, para que não pareça que está sendo entrevistado. Nossas entrevistas são gravadas em tocadores de MP3 dos mais simples que existem, daqueles chineses que a gente encontra em qualquer camelô de esquina. Esses gravadores são muito pequenos, podem ser colocados bem ao lado do entrevistado sem chamar a atenção ou inibi-lo, como a gente vê nas fotos abaixo.
Apesar de o projeto ser sobre o Reinado, não começamos as conversas entrando direto nesse assunto. No início das entrevistas, as pessoas ficam tímidas. Então perguntamos pela origem da família, pedimos para descrever o lugar onde nasceu, contar histórias que ouvia dos pais e lembrar outras reminiscências da infância. Além de ajudar o entrevistado a se soltar, falando mais naturalmente, essas narrativas iniciais serão um elemento importante para compor os personagens do livro. É por meio delas que entramos no universo que rodeia o entrevistado.
A memória das pessoas é volátil. Muda com o momento em que estamos, e de acordo com as experiências que acumulamos. Aos poucos, os fatos que vivenciamos vão sendo carregados de subjetividades. Quando conversamos com nossos entrevistados, mesmo que sem intenção, vamos instigando as pessoas a exercerem uma análise sobre tudo aquilo que elas viveram. Querendo ou não, elas estão deixando para a posteridade não uma biografia cronológica precisa e imparcial, mas um testemunho crítico sobre as mudanças que observaram em seu mundo ao longo da própria trajetória.
Por isso é tão difícil, na gravação das conversas, nos atermos ao passado. As entrevistas são abertas, partindo sempre do início da vida dos entrevistados e sendo guiadas pelo próprio discurso. Por causa desta liberdade, muitas vezes o relato é cheio de idas e vindas, de comparações entre passado e presente. Os dias atuais são sempre a referência de comparação, como a gente pode ler neste pequeno trecho da entrevista do seu Adão, da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Praça do Mercado:
Morar em Carmo do Cajuru mesmo eu nunca morei, mas sou descendente de lá, mas minha infância foi muito brincadeira de rouba-bandeira, pique esconde, aquelas brincadeira. Eu nasci em Araújo, eu vim pra Divinópolis com dois anos. Divinópolis era muito gostoso, muito bom. Eu falo pra vocês que a gente foi muito bem criado graças a Deus. Do ponto de pobre, né, mas era uma cidade tranquila, com muita alegria. Eu com sete anos eu saía do Porto Velho pra ir no grupo Miguel Couto, que hoje é o pronto socorro, fica de lá do pronto socorro. Eu com sete anos saía sozinho do Porto Velho e ia pra aula, quer dizer, não corria perigo nenhum, era uma cidade maravilhosa e é até hoje, porém com os problemas da vida de hoje em dia, aí cê já viu né?
Desta vez, a transcrição terá um papel diferente dos projetos que executamos anteriormente, como na Casa de Saúde Santa Fé e em Luminárias. Como o projeto Reinado para as Novas Gerações é voltado para as crianças, nosso trabalho vai consistir na criação de personagens infantis, que encontrarão reinadeiros mais antigos para contar as histórias que estamos ouvindo. Os relatos transcritos, desta vez, servirão como as marcas de oralidade que usaremos na construção dos personagens da ficção.
Por isso o registro meticuloso da oralidade é tão importante. Não se trata apenas de se contar uma história. Temos que recriá-la, buscando o máximo de correspondência entre realidade e ficção. Muitas coisas que são ditas passam despercebidas na hora da entrevista. A transcrição revela estes pormenores.Também nesta fase, refletimos melhor sobre aquilo que vimos e sentimos no momento da gravação. Lugares, sotaques, risadas, manias, roupas e tudo mais que observarmos servirão para explorarmos na próxima etapa do projeto. Daí a parte divertida do processo de transcrição.
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