Esse é o caminho que me levou ao texto que apresento abaixo a vocês. O processo de encontro ao conteúdo criado pelo Hermano foi publicado para ressaltar como nossos hábitos se transformam e, atualmente, estão cada vez mais relacionados ao conteúdo digital e às famosas "nuvens".
Engraçado e lamentável, simultaneamente, é o comunicado de encerramento da Modern Sound. Digo lamentável não porque eu chore pelo fim da loja. O que é triste no comunicado é a constatação de como grande parte da indústria permanece lamentando o fim dos velhos tempos de menos conteúdo disponível e mais lucros para empresas como a loja carioca. "Apesar de todo nosso esforço, infelizmente não foi possível reverter a perda causada pela evolução tecnológica, em que toda a cadeia de negócios ligada a questão do direito autoral foi ferida de morte".
Uma opinião sincera? Se vocês realmente pensam assim, já deveriam ter fechado as portas há mais tempo. E novamente, com a mesma sinceridade: não farão falta alguma. Eu e outros bilhões de pessoas preferimos, sem dúvida alguma, toda a "perda causada pela evolução tecnológica" do que 20 Modern Sound.
A impressão que tenho é que apesar de trabalharem no mercado musical muitas pessoas, como quem assina o comunicado da Modern Sound, não VIVE o mercado musical atual. Mantêm uma mentalidade extremamente retrógrada, tendem a culpar a tecnologia em vez de utilizá-la para adaptar seus negócios, explorar nichos diferentes, novos modelos de negócios, etc.
A única grande perda provocada pela evolução tecnológica no setor musical refere-se à manutenção de monopólios que exploram (ou exploravam) a escassez de conteúdo musical em seus suportes físicos (como CDs, DVDs e vinis). E essa "perda", que dá espaço para a circulação de uma maior diversidade de artistas em todo o mundo, ampliando o mercado, não reduzindo, é muito bem-vinda. Velhos (hábitos, negócios, modelos, pessoas) quando se ferem, têm maior probabilidade de morte. Que venham os novos (formatos, modelos, ideias, pessoas).
Uma nova eraÚltimo dia de 2010. A Modern Sound, loja de discos de Copacabana,encerra suas atividades. A Blockbuster americana entrou com pedido defalência este ano. Fim de uma época. Lembro das minhas viagens deadolescente, do Rio de volta para Brasília, com LPs importadoscarregados cuidadosamente na sacola da Modern Sound — medo de o vinilempenar e assim perder a grana de muitas mesadas. Estranho, agora medou conta: nunca mais tinha comprado nada ali. E nas minhas maisrecentes viagens internacionais trouxe pouquíssimos CDs.Meu som está quebrado, não tem peça para reposição, e fico compreguiça de tentar resolver o problema. Não baixo música, escuto quasetudo o que me interessa via YouTube, ou sites de streaming. Nem pensoem arrumar mais espaço em prateleiras (na verdade no chão da minhacasa, onde pilhas de CDs e LPs atravancam todos os caminhos) ou nosdiscos rígidos para armazenar pesados arquivos sonoros.
Tudo está na “nuvem”, abençoada nuvem, facilmente navegável com a ajuda do Google.
Esses meus novos hábitos não são minoritários. O fechamento da ModernSound é mais uma prova de que todo mundo passou a consumir músicaonline.Ou não. A internet não é a única culpada. O buraco do modelo denegócios fonográfico é bem mais embaixo, ou acima e por todos os lados.E também não é só questão de economia. Vivemos uma grande transformação cultural no modo como nos relacionamos com amúsica. Mais precisamente: voltamos ao padrão básico de consumo musicalda humanidade, aquele que prevaleceu na maior parte das culturas emesmo na história da chamada civilização ocidental até pelo menos oinício do século XX. Música quase sempre foi um bem efêmero, semregistros físicos (mesmo partituras são invenções recentes). Só com achegada dos toca-discos e depois dos gravadores é que isso mudou e aspessoas aprenderam a comprar discos e fitas para escutar em casa nahora que sentissem necessidade.
Mesmo durante o tempo de império do fonograma, as comunidades que aindaproduziam “folclore” tinham uma outra relação com a arte sonora, nuncatratada exatamente como arte. Não havia divisão clara entre quem tocavae quem escutava, tudo era feito na hora, mais ou menosimprovisadamente, com autoria coletiva. A ideia de se registrar aquilopara escutar depois, fora da festa, não fazia sentido. Para escutarnovamente aquela música, ou para fazer de novo aquela música, a genteprecisava esperar por novas festas.Quando passeio pelo YouTube, não posso deixar de pensar: eis o novofolclore. Como diz o Kraftwerk: “Music, non-stop.” Festa, non-stop,tanto em termos geográficos como temporais. Todo mundo fazendo música,todo mundo fazendo clipes para as músicas dos outros, todos os quartosdo mundo unidos por webcams numa produção musical/dançante/festivaconstante e avassaladora. Ninguém se contenta apenas em ouvir a música:é preciso expor para o mundo sua própria interpretação sonora/visual/coreográfica daquele hit do momento, numa conversa musical sem fim.Hit: não émais questão de discos vendidos, mas sim de views, audições,número de clipes feitos por fãs, o que pode gerar dinheiro com shows,pois os shows são materializações — também efêmeras, mesmo quandoregistradas por milhões de celulares — da festa que acontece na rede.O hit do momento, a música que vai sacudir o Brasil neste verão é“Minha mulher não deixa não”. Fico na dúvida até se é música, e aquinão vai nenhum juízo de qualidade artística. Acho que é mais um mote,um tema para improviso e diversão das massas. Procure pelo título noYouTube. Você vai encontrar milhares de vídeos. Há a música tocada emtodos os ritmos imagináveis, com muitas letras diferentes. Hátecnobrega, forró, samba, funk, sertanejo.
Há respostas para a letra “original” (mas nesse caso ninguém sabe quala verdadeira origem), inclusive dizendo o oposto: “Minha mulher nãomanda em mim”. Isso sem contar com os vídeos que apenas criam novasimagens para uma das versões da música, geralmente com gente seesbaldando de dançar, em seus quartos, quintais e ruas de todo o país.É uma grande brincadeira coletiva, uma explosão de criatividade jocosa,uma gargalhada eletrônica juntando incontáveis risadinhas (e, claro,para a atual Lei do Direito Autoral, toda essa brincadeira está fora dalei). Na vitrola, e mesmo na TV, perde grande parte da sua melhor graça.Vendas em canto nenhum. Diante dessa saudável bagunça toda, e dofechamento da Modern Sound, resta a pergunta: o disco acabou? Claro quenão! Sei lá como vai funcionar o negócio, mas nunca escutei tantodiscobom recém-“lançado” para Como o maravilhoso “Mafaro”, de AndréAbujamra, um dos meus preferidos de 2010. Diz a letra da faixa“Daunloudaram”:
“Ei tudo bom/ Quem sabe algum dia alguém/ escute o seu som/ Ei numesquenta, esquece/ Já baixaram seu CD inteiro na/ internet.” Tomara quebaixem mesmo, e comprem e façam vídeos incríveis para cada música(tomara que apareça um jeito de o artista ganhar dinheiro com isso).Motivos para a festa não faltam no disco. Festa de muitas fantasiasétnicas: do afro-beat à farra árabe ou cigana, tudo linkado pela luz dacauda da flecha de Oxossi ou pela proteção de Logun-Éde. André seexplica: “‘Mafaro’ quer dizer ‘Alegria’ na língua do Zimbábue. Este CDé para aceitar a alegria.” Tudo muda o tempo todo. Que todo mundo, incluindo meu querido Pedrinho da Modern Sound, fique protegido datristeza e encontre motivos para alegria nova em 2011. E depois.
Fonte Meio desligado
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