Caros recrutadores,
Em 2007 vocês me convidaram pela primeira vez a conhecer e quem sabe, até fazer parte do mundo mágico da Google Inc.. Aconteceu bem no apogeu de uma das maiores batalhas que a empresa já travou na sua história, onde eu era um dos personagens que incomodava no lado do exército do inimigo. Aqui no Brasil era o momento em que a Google reinava absoluta e soberana, assumindo publicamente a falta de compromisso com a legislação brasileira, ao tempo que ostentava o sabor das cifras diante do surpreendente fenômeno de crescimento dos seus usuários no país.
“Eu perco o sono só de pensar na mina de ouro que o Orkut pode representar” disse Hohagen à revista Exame, a principal revista brasileira de negócios, em 2005.
(fonte)
Quero pontuar o que me instigou neste convite. Primeiro, não sou um bom programador. Segundo, não sou disciplinado e organizado o suficiente para atuar como um bom administrador de sistemas. E não há qualquer evidência pública que prove o contrário. Considerei portanto bastante estranho o seu convite, já desde o início. Foi muito generoso. Em conversa com colegas muito mais próximos do perfil que uma empresa gosta – e que já tinham inclusive passado pela experiência do processo seletivo da Google – ficou evidente que o meu caso estava longe de se submeter aos critérios de exigência de vocês. Mais esquisito ainda foi a declaração do advogado Durval Noronha, procurador da Google no Brasil neste ano. Utilizando da retórica de mais baixo nível do juridiquês, declarou, aos berros, a uma amiga jornalista, que não estava autorizado a confirmar (nem a negar) se o convite tinha sido motivado pelo fato de eu ser um dos diretores da Safernet. Aliás, sobre esta figura que por tanto tempo representou o interesse de vocês aqui, vale uma citação:
No impasse, o Google Brasil resolveu lavar as mãos, prometendo “repassar as denúncias à matriz“. Acrescente um agravante: o advogado contrato pelo buscador para lidar com a imprensa, Durval Noronha, que tem um escritório de advocacia homônimo, se notabilizou pelos decibéis que atingia quando conversava com a mídia.
Dezoito meses depois, Noronha continua conhecido no meio pelos gritos que dava com jornalistas como se a potência do seu gogó contornasse a falta de um argumento cabível para que o Google Brasil não combatesse os crimes dentro do Orkut. Descobriu-se mais tarde que Noronha foi responsável por defender o traficante norte-americano William Reed Elswick, refugiado no Brasil e ajudado por Edmar Cid Ferreira.
(fonte)
Em suma, no ano de 2007 eu disse “não, obrigado”. Resolvi ainda explicar pra vocês as razões pelas quais trabalhar na Google Inc. não me interessava.
Pois bem. No início de 2008 fui novamente contatado por vocês, representado por você, recrutador número 2, que supostamente foi motivado a fazer o convite devido ao meu envolvimento no Debian, especialmente por co-manter o pacote Epylog, alegando que a Google era uma grande “parceira” (na verdade você usou algo mais pesado: “proprietor“) de ambas as áreas (Python e Debian). Ora, eu nunca tive um envolvimento profundo no Debian. Na verdade me considero muito mais um contribuidor esporádico do que um desenvolvedor. As pessoas precisam entender que fazer parte de uma comunidade de software livre não implica em ser um hacker hardcore. Eu sequer fico à vontade com o rótulo de “Debian Developer”. Prefiro dizer que sou membro do Projeto Debian. Para piorar, sou um completo newbie em Python. O fato de manter um pacote nessa linguagem não significa que eu tenha habilidade com ela e você deveria saber disso. Nesse ponto eu penso que a Google deveria educar mais seus recrutadores. Dessa vez eu simplesmente te respondi “não, obrigado”. Não me dei o trabalho de explicar as razões, pois a esta altura pareciam óbvias demais para nós dois.
Ah! Você, recrutador número 2, resolveu ainda estender o convite para minha esposa. Pessoalmente considero Tássia muito mais capaz do que eu, entretanto as razões que (supostamente) encorajaram seu convite não me convenceram (nem a ela), pois Tássia tinha muito poucas contribuições de código para o Debian. Enfim, ela respondeu… ou não respondeu, não lembro. Certamente você tem isso anotado.
Em 2008, você, que vou chamar aqui de recrutador número 3, muito educado e profissional, ainda que ciente da minha negativa ao seu colega número 2, fez questão de insistir no convite, oferecendo-me a oportunidade de conhecer novos postos que envolviam engenharia de software, administração de sistemas e operações de rede. Seu único pecado foi mencionar o apelido do cargo disponível, que aplicava-se nas três áreas citadas, algo como: “Bombeiros Digitais do Google” (Google’s digital firefighters). Eu logo pensei: se um dia faltar razões morais para não trabalhar na Google, eu terei uma razão de natureza fisiológica, pois não estou preparado e nem disposto a me tornar um apagador de fogo, seja ele digital ou não. Enfim, acabei não respondendo. Depois de alguns dias você continuou insistindo e acabamos agendando um telefonema. Passamos aproximadamente 30 minutos conversando, se bem me lembro. Você me explicou alguns detalhes do processo e me ofereceu inclusive a possibilidade de “escolher” alguns países para o trabalho, incluindo a tranquila Suíça e o não tão tranquilo Estados Unidos. Foi mais uma boa oportunidade pra explicar algumas das razões pelas quais eu não estava interessado em trabalhar para vocês. No entanto, quero deixar pública minha gratidão pela sua paciência de mãe com o meu inglês, que por telefone deve ser muito chato de aguentar. Ah… 2008 foi um ano em que a Google gastou alguns milhões de dólares contratando advogados de peso no Brasil (tentem identificá-los nos vídeos abaixo), evitando assim maiores constrangimentos nas convocações da CPI da Pedofilia, lembram? Aqui estão as cenas da primeira convocação, registradas pela TV Senado, onde o nervosismo do Alexandre Hohagen claramente reflete o momento de tensão que a empresa vivia no Brasil:
Daí pra frente as coisas pioraram um pouco pra vocês. Depois de ter um lobista preso em frente às câmeras pela CPI, por bisbilhotar documentos sigilosos à serviço da Google…
Identificado como diretor de Informação e Monitoramento Legislativo da ArkoAdvice no site da consultoria, Rildson Moura afirmou, ao ser preso, que era jornalista e gravaria todas as atividades da CPI para enviar à direção do Google em São Paulo, segundo informações da Agência Senado e de fontes próximas ao caso ouvidas pelo IDG Now!.
(fonte)
…e ainda diante da segunda convocação formal para o Alexandre explicar a morosidade do cumprimento das promessas feitas à CPI, a empresa viu-se obrigada a assinar, muito a contra-gosto, este Termo de Ajustamento de Conduta com as autoridades brasileiras. Vale a pena relembrar (principalmente discurso do Procurador da República Sérgio Suiama, minuto 3 do segundo vídeo):
Google assina TAC contra a pedofilia – SaferNet na CPI da Pedofilia – parte 1
Google assina TAC contra a pedofilia – SaferNet na CPI da Pedofilia – parte 2
Depois de um estressante 2008, as coisas se acalmaram um pouco na minha vida. Com o processo de residência permanente no Canadá finalizado, decidimos ir para Montréal, ainda que aguardando a possibilidade de passar mais um tempo no Brasil por conta de um convite de trabalho bem interessante no Ministério Público Federal. Em pouco tempo que estivemos em Montréal, minha esposa Tássia se envolveu com um grupo de teatro na Concordia University e já estava realizando alguns trabalhos voluntários, enquanto eu tomava algumas aulas de música na Université de Montréal. Enfim a nomeação no MPF aconteceu e voltamos para mais uma jornada temporária na nossa vida no Brasil. Bom, já que vocês não me convidaram em 2009 e portanto eu não tinha nada pra falar de vocês, resolvi preencher esse parágrafo com essa breve atualização, que deve interessar ao menos aos nossos amigos distantes que estão sem notícias nossas há algum tempo.
Vamos então falar de 2010. Recebi com surpresa nesta semana outro “ping” seu (recrutador número 3), convidando-me novamente a conhecer as novas oportunidades de trabalho na Google. É a quarta tentativa em quatro anos. Já temos uma história pra contar, não é mesmo? Mais uma vez eu fui obrigado a dizer “não, obrigado”. Desta vez eu tenho mais razões do que nunca para ter tomado esta decisão e faço questão de pontuar algumas aqui. A primeira é que estou mais velho e isso me faz mais capaz de compreender o que quero da minha vida, aliás, isso é uma das poucas coisas que o avanço do tempo nos proporciona de bom. Esta maturidade me faz por hora convicto de que a minha natureza é conflitante com o modelo de trabalho em que a sobra do valor do meu tempo é destinada ao bolso dos seus acionistas. Bastante simples, mas levou tempo pra entender. Isso já seria razão suficiente pra não trabalhar pra vocês. Pra piorar, a Google tem dado razões extras para meu desapontamento com esse sistema. Após algumas declarações do seu CEO em 2009, resolvi iniciar o ano de 2010 sem mais utilizar os serviços da Google que demandam autenticação de usuário. Pretendo me livrar de alguns outros em breve (mas isso também é outra história…). Ademais, recentemente ficou ainda mais claro que a empresa tem deixado de lado critérios técnicos e outros ainda mais sérios, como o direito à intimidade dos seus usuários, em detrimento da correria do mercado que mergulha hoje no baú do tesouro das redes sociais e demais apetrechos dois-ponto-zero.
Vocês sabem que o lançamento precipitado do Buzz foi desastroso e irresponsável. Ainda tratando do tema privacidade, a Google até que tentou uma reconciliação assumindo aquela postura pseudo-oficial em relação a sua atuação no mercado Chinês, quase que criando uma crise diplomática com o governo americano (este eterno parceiro, suposto defensor das liberdades individuais…). Honestamente não me convenceu, afinal é notório que a empresa sempre endossou os filtros de censura daquele governo por muito tempo. Na minha opinião o problema está no fato de vocês pensaram que não foram retribuídos suficientemente em troca ao apoio à censura que ofereceram ao governo chinês. Além disso, eu cultuo a crença de que uma corporação privada de capital aberto, por definição, não possui a mínima condição de assumir qualquer postura de mercado tomando uma ideologia como base de sustentação. Estratégia de negócio travestida de postura moral é algo simplesmente obsoleto, pra não dizer patético.
Diante dos fatos, só tenho a concluir que nossa relação não tem futuro. Acreditem, eu não agregaria nenhum valor para a empresa que vocês representam. Como já declarei, não sou dotado das habilidades específicas que vocês esperam. Não tenho nenhuma certificação (e nem pretendo permitir que ninguém me certifique de nada). E não sou fã da vaidade profissional. Admito que, por outro lado, sei que sou capaz de fazer um bom trabalho, mas pra isso preciso de dedicação, o que consequentemente demanda motivação. E isso seria por fim nosso grande problema de relação, pois motivação é algo que a Google definitivamente não tem a me oferecer.
Portanto, mais uma vez: não, obrigado.
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