Acabei de assistir ao filme “Batismo de Sangue”. Estou com os nervos à flor da pele mas vou ser ponderado neste post.
O Brasil ainda tem preso na garganta tudo aquilo que foi obrigado a digerir no regime militar de 64. Excetuando-se casos isolados de indenizações insuficientes e tardias, o brasileiro que pensa um pouco parece que vai ter que engolir tudinho, ao menos até que o último dinossauro repressor parta pra outra. Este é o sentimento que fica após digerir as injustiças expostas no filme, baseadas em fatos reais, registrados no livro de mesmo nome, do Frei Beto. Tenho um documentário bem amador sobre Carlos Marighella que confirma muitas cenas deste filme.
O que sustenta meu pessimismo é o fato de um partido reprimido pelo regime, depois de 8 anos no governo, composto por bastante gente que foi pessoalmente violentada moral e fisicamente nos anos de chumbo, não ter consolidado nenhuma política séria sobre o tema. Tenho acompanhado um pouco a proposta de criação da Comissão da Verdade, que infelizmente é também uma proposta (oficialmente) recente. Como era de se esperar, o PIG e o lobby dos militares, especialmente em ano eleitoral, é fortíssimo e tem um peso mais forte do que nunca nas decisões.
Uma breve pesquisa sobre a comissão na rede expõe como está sendo tratada. Olha a declaração do Maynard Marques de Santa Rosa, general ex-general de alto escalão do exército:
“A ‘Comissão da Verdade’ de que trata o Decreto de 13 de janeiro de 2010 certamente, será composta dos mesmos fanáticos que, no passado recente, adotaram o terrorismo, o seqüestro de inocentes e o assalto a bancos como meio de combate ao regime, para alcançar o poder.”
Observe a opinião de um elemento influente do clubinho da Veja sobre a declaração do dinossauro:
Porque o objetivo, evidentemente, não é saber “a verdade”, mas criminalizar a história. Misturar “abertura de arquivos” com “comissão” é mera patranha esquerdopata.
(fonte)
Falando em Veja, é fácil notar no filme a intenção do diretor em colocar esta cartilha do PIG como um folhetim que garantia para os subversivos a livre circulação nas ruas. Em algumas cenas os estudantes estavam disfarçados de leitores-de-Veja, exibindo a capa da revista, com o objetivo de disfarçar os trogloditas.
Mas o que quero registrar neste post são duas situações recentes que presenciei, que de alguma forma fazem parte do meu dia-a-dia de trabalho. A primeira foi durante um debate realizado no Comitê Gestor da Internet, em 9 de fevereiro de 2010. Era o Safer Internet Day (Dia da Internet Segura). No Brasil a PRSP foi uma das entidades organizadores e eu participei do processo. Como esperado, um debate com a presença do prof. Sérgio Amadeu é sempre um debate acalorado. Ainda mais quando compartilha a mesa com um debatedor da Polícia Federal. Dessa vez foi umA debatedorA da PF, o que na minha opinião deixou o evento bem interessante. A delegada Juliana Cavaleiro foi incisiva nas questões que ela acredita ser importante, como a necessidade de guarda de logs pelos provedores de acesso e serviço, contrariando a opinião do professor. Por outro lado, fez uma reflexão importante sobre o legado que o regime militar deixou no Brasil e como isso tem influenciado o ciberativismo no país. Na minha observação, a delegada deixou bastante claro que essa preocupação é legítima, ao tempo em que tentou mostrar que esse momento histórico é passado e que as polícias estão sendo também sufocadas por conta dessa herança dos ditadores e arapongas certa vez legitimados pelo estado. Felizmente, os sabores e dissabores desse debate foram registrados e podem ser visualizados no website http://internetsegura.br, a partir dos endereços abaixo:
(Parte 1)
http://www.internetsegura.br/videos/67
(Parte 2)
http://www.internetsegura.br/videos/68
A segunda situação foi num debate que surgiu durante uma disciplina de Ciência Forense, que estou acompanhando como ouvinte na pós-graduação da POLI/USP. A discussão foi pra lá de acalorada, embora a minha participação tenha sido bastante pacífica. Os interlocutores foram eu, um colega que é também professor e ex-militar, e um delegado de polícia. Em meio aos argumentos sobre a necessidade de guarda de logs e a natureza sigilosa de um endereço IP na Internet, o delegado tocou no mesmo ponto que a Juliana expôs no debate anterior. Ele tentou explicar como tem sido difícil pra polícia atuar diante das dificuldades de coletar evidências na rede. Segundo ele, esta dificuldade existe, parcialmente em virtude de um receio social, que de alguma forma (felizmente) influencia o judiciário. Todos ainda com uma visão de estado totalitário, policialesco, consequência dos tempos do regime militar. Bem como a delegada, ele tentou explicar que isso mudou.
Eu posso estar sendo ingênuo, mas acredito que há, principalmente entre os mais jovens nas corporações de polícia e justiça, uma visão negativa (mesmo minoritária) sobre o legado que o período 1964-1985 deixou. Acredito que as opiniões das duas autoridades que citei aqui são verdadeiras. E pior ainda: que as duas partes (ativistas e autoridades) estão corretas no seu ponto de vista. E não há briga mais difícil de separar quando as duas partes têm razão
O fato é que a ferida da repressão está aberta e o cheiro ainda exala forte pra todo lado. Esta ferida desenha uma barreira entre a sociedade civil e as autoridades que é impossível desconsiderar. Em determinado momento o filme deixa uma mensagem clara: “opressor e oprimido nunca estarão do mesmo lado”. É exatamente isso. Aqui, uma parte não tolera ser oprimida. A outra não consegue convencer que não é mais opressora. Estão portanto em lados diametralmente opostos. Felizmente a assimetria de poderes entre elas diminuiu de lá pra cá. E a Internet é sem dúvida a ferramenta mais importante pra garantir essa força para o ativismo, antes sujeito à censura prévia e sem critérios. Assim torna-se impensável colocá-la na mesa de negociação. Temos que admitir que o ônus social é a dificuldade para persecução dos crimes que dependem deste acordo, ponto que certamente as duas partes concordam.
Ou seja, o que consigo sentir (mais do que pensar) nesse momento é:
Eu, enquanto ativista, preciso de evidências bastante fortes de que as corporações policiais compartilham honestamente das opiniões dos delegados aqui citados. Enquanto imaginar que estes são minoria, não vai dar pra negociar.
Enquanto o estado não convencer toda a sociedade que o regime repressivo foi um erro histórico, com medidas sérias, inclusive punitivas, não vai dar pra negociar.
Enquanto a polícia não garantir que é invulnerável ao lobby que coloca o interesse da indústria e dos bancos acima dos meus direitos como cidadão, não vai dar pra negociar.
Enquanto o legislativo não garantir que vai legislar em prol do interesse público, mesmo em detrimento do interesse dos seus financiadores, não vai dar pra negociar. (que tal começar por uma reforma política séria?)
Enfim, enquanto o Brasil não convencer que tem uma postura de estado diferente das tendências reacionárias de alguns países na Europa, enquanto que não pretende seguir as regras do incontrolável mercado livre, que infecta estado e polícia, dos EUA, não vai dar pra negociar.
Dá pra perceber então que este confronto vai render ainda muitas décadas (séculos?). <utopia>Se todas essas manchas históricas, que vão muito além da ferida da repressão, são motivos de discórdia, que tal trabalharmos juntos pra começar a apagá-las definitivamente? Será que já não somos maioria? </utopia>
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