Há algumas semanas estou devendo um post com recomendações de músicas e livros que conheci recentemente. Finalmente resolvo largar mão da preguiça (não é só falta de tempo) e escrever esta postagem.
No post de hoje, vou me ater ao meu último livro, que comecei e terminei anteontem, numa só levada, e que entrou para minha lista de leitura obrigatória. O último da tribo, do jornalista Monte Reel, traz com riqueza de detalhes a história de um índio solitário do sul de Rondônia, que conquistou, pela intervenção de funcionários da Funai, o direito de morar em paz numa reserva indígena criada só para ele. A história, que ganhou repercussão na grande mídia no início da década passada, teve início em 1996, quando a chamada Frente de Contato da Fundação Nacional do Índio (Funai), comandada pelo sertanista Marcelo dos Santos, começou a buscar tribos isoladas do contato com o branco naquele estado.
As buscas levavam a aventuras extremamente interessantes no meio da floresta, uma verdadeira aula para quem se interessa mesmo que minimamente por antropologia, etnografia e assuntos do gênero. Em 1995, Marcelo e seu grupo tiveram contato amistoso com um casal da etnia Kanoê, que os levaram a sua aldeia, onde residiam os últimos sete remanescentes. Próximos à tribo, uma outra etnia, os Akuntsu, sobrevivia com apenas cinco integrantes à brutalidade e à matança dos anos anteriores.
As duas etnias vinham de um trágico histórico de genocídio resultante do contato com a população civilizada. O livro explica, com cruzamento de histórias paralelas, números e estatísticas, como se deu a colonização da região. O governo militar, na década de 1970, incentivou a migração em massa para Rondônia, com centenas de loteamentos vendidos a preço de banana para aventureiros. Os novos fazendeiros foram percebendo que a presença de indígenas nas redondezas eram um problema, por uma razão muito simples: a Constituição, que garante o direito de criação de reserva indígena em todo lugar da floresta que abrigue aldeias e tribos.
O resultado do incentivo à colonização desordenada foi uma tragédia para os índios. Pistoleiros e grupos de extermínio contratados por fazendeiros mataram sem dó todos índios que passaram por sua frente. Para quem ainda pensava que o genocídio indígena foi coisa dos tempos de Cabral, o livro mostra que essa história ainda é coisa da era da internet. No caso dos Kanoê, por exemplo, o genocídio aconteceu quando um grupo de 22 homens (todos da tribo) se desgarrou da aldeia em busca de alguns colegas desaparecidos. No meio do caminho, foram assassinados por pistoleiros a serviço do agronegócio. Desesperadas, as mulheres da tribo, ao saber da notícia, optaram pelo suicídio coletivo. Apenas duas irmãs não aceitaram o suicídio, fingindo que tinham tomado o veneno e ficando com seus filhos como últimos representantes da etnia.
Relatos como esse vão se acumulando aos montes no livro de Monte Reel e deixam claro que, em termos de genocídio e de limpeza étnica, o Brasil deixa qualquer Saddam Hussein ou George Bush no chinelo.
Saindo um pouco da história em si, podemos debater vários assuntos do momento com a narrativa da busca do índio do buraco. Não é complicado entender, depois da leitura deste livro, porque a construção da usina de Belo Monte causa tanta controvérsia da parte de ambientalistas. Se bem observado, o projeto de uma megaconstrução no coração da Amazônia guarda enormes semelhanças com o incentivo à migração para Rondônia da época da ditadura.
Sob o argumento simplório do desenvolvimento econômico, o governo constrói usinas, ferrovias, rodovias e outros empreendimentos que levam um monte de gente nova para um lugar dominado por comunidades tradicionais. Este tipo de contato tem trazido historicamente prejuízos sociais e culturais irreparáveis, sobretudo quando se fala em comunidades indígenas. O que está em jogo em Belo Monte não é a quantidade de água que vai ocupar o solo. Para isso, existem leis de reparação ambientais até certo ponto corretas. O grande imbróglio é o impacto cultural da enorme leva de aventureiros em busca de oportunidades de crescer na vida, que nem sempre surgem tão facilmente quanto sugerem as promessas.
Outro tema em que se ganha profundidade a partir da leitura são as reservas indígenas no Brasil. Nascidas a partir de ideias do famoso sertanista Cândido Rondon, as reservas viraram direito constitucional garantida a qualquer povo indígena da floresta. A descoberta do índio solitário despertou uma nova discussão: pode um único remanescente de uma etnia ter direito a uma reserva só pra ele?
As situações vividas pela Frente de Contato da Funai no livro são pontuadas por constantes disputas entre políticos, indigenistas, advogados, jornalistas, ambientalistas, fazendeiros, promotores e servidores públicos, revelam a complexidade do debate onde os papéis de mocinho e bandido nem sempre são óbvios. O livro mostra para nós leigos que o dilema indígena no Brasil vai muito além do argumento lugar-comum de que tem muita terra pra pouco índio.
Em discussões como o recente episódio do julgamento da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, o que se viu foi uma série de argumentos rasos e maliciosos da parte dos latifundiários locais, que não por acaso foram adotados pela grande mídia, sabidamente sócia do podre agronegócio brasileiro. A noção de assuntos como esse passa a ser outra depois da leitura de O último da tribo. O genocídio indígena que parece não ter fim revela o desprezo do brasileiro pelos povos nativos e escancara a fraqueza das nossas instituições.
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