Pode parecer estranho discutir com profundidade política pública, mobilização comunitária, arte digital e outros assuntos cabeludos abusando de um vocabulário repleto de gírias pós-adolescência. Mas na quarta edição Congresso Fora do Eixo, que aconteceu semana passada, ouvir um único sujeito dissertar sobre a garantia das liberdades individuais no marco civil da internet usando expressões como tipo assim, as parada e sacou? (pra ficar nas que eu conheço) é a coisa mais comum do mundo.
Estivemos por lá como observadores por um dia e meio. Pouco tempo num evento que começou num sábado e terminou apenas no outro domingo. Mas o suficiente para respirar um pouco da atmosfera que cerca o movimento cultural que nos últimos anos tem gerado interesse de muita gente influente de dentro e fora do eixo.
Antes de entrar nos detalhes do que acontecera por lá, cabe uma breve explicação do que é e como funciona o tal Circuito Fora do Eixo. O movimento teve início a partir do encontro de produtores de festivais de música independente de Uberlândia, Cuiabá e Rio Branco, que começaram a estruturar uma espécie arranjo solidário em que, para tocar numa cidade, as bandas trocariam gentilezas como hospedar e ser hospedado nas casas uns dos outros, reduzindo custos e ampliando as possibilidades de intercâmbio.
A coisa ganhou dimensões enormes se levada em conta a ideia original. Foram criados bancos solidários, onde se emitiam moedas de troca para mediar o escambo entre casas de shows, prestadores de serviços, estúdios de gravação e artistas. Hoje, os coletivos (associações formais ou informais que reúnem bandas e produtores) formadores da rede se distribuem por todos os estados brasileiros e alguns países latino-americanos.
Por mais descentralizado que se proponha e ao contrário do que pode sugerir a expressão que dá nome à iniciativa, o movimento tem sede em São Paulo, na Casa Fora do Eixo, que abriga algumas das principais cabeças da rede e onde os coletivos se mobilizam, debatem política e, de vez em quando, até tocam música. E a capital paulista foi justamente a sede deste quarto congresso, com a maioria das discussões centralizadas no campus da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo se comentava no local dos debates, o congresso trabalhava com o conceito de não-grade. Do ponto de vista prático, isso é o que pode se chamar de não-prático. É que os grupos de debate ou mini-conferências se espalhavam pelo amplo subsolo do Paço das Artes, onde rodas de conversa não eram identificadas. Você chegava por ali e ouvia cada uma até descobrir de qual queria participar. É uma forma de organização que aposta na espontaneidade dos presentes, mas que pouco preza pela facilidade de quem está um pouco perdido, como era meu caso.
Circulando por ali, acompanhavam ou conduziam as rodas de conversa pessoas tarimbadas, conhecidas no meio cultural e formadoras de opinião, que se destacavam da maioria hippie/nerd pelo vestuário mais almofadinha ou pelos cabelos brancos, coisa rara no local. Eram pessoas como Célio Turino, Cláudio Prado, Sérgio Amadeu e Ivana Bentes, que participaram de projetos importantes, sobretudo envolvendo a rede de Pontos de Cultura, menina dos olhos da gestão Gil/Juca no Ministério da Cultura e de rumos ainda desconhecidos depois da posse de Dilma Rousseff na presidência.
A primeira roda de conversa que acompanhei era conduzida pelo produtor cultural Cláudio Prado, que puxava dos presentes informações sobre ocupação de espaços públicos pelos artistas. “É errado dizer que é preciso tirar as crianças da rua”, filosofava. A propósito do que se discutia, comentei sobre o abandono dos espaços ferroviários, no que Cláudio insistiu sobre a importância de se ocupar prédios abandonados para fins culturais, mesmo que para isso não se obedeça à lei. O exemplo dado foi o da Universidade de Música Popular Bituca, de Barbacena, que nasceu a partir da ocupação de uma fábrica abandonada.
A conversa se prolongou com a discussão sobre a recente mercantilização do carnaval de rua do Rio de Janeiro, a ineficiência de conselhos municipais de cultura em cidades do interior e as prefeituras que promovem como política cultural apenas a realização de grandes shows gratuitos à comunidade.
Em seguida, seguimos para uma oficina prática de WordPress, software livre de gestão de blogs, ministrada pelo programador Leo Germani, da empresa HackLab. Germani é um cara interessante, desenvolvedor de plugins para WordPress, que trouxe poucas mas muito significativas novidades ao que já sei sobre o programa usado para gestão desta rede de blogs.
Posso dizer que chega a ser engraçado ver o Fora do Eixo envolver software livre nas discussões. A reflexão crítica recente indica que o modelo de produção colaborativa do software livre pode ser aplicável no mercado da cultura como alternativa ao tão combatido modelo industrial. Foi essa consciência que levou a Cultura Digital a conquistar amplo espaço nas políticas culturais do governo Lula e, provavelmente, que levou o Circuito a se aproximar desse debate.
Porém, na prática, o apoio ao software livre parece estar só no gogó. A coisa mais comum por ali era ver a turma abrindo notebooks (e eram muitos, mas muitos mesmo) da Apple, a empresa norte-americana símbolo da indústria cultural do software, fetiche de usuários moderninhos e nem um pouco adepta de ideias libertárias.
Contradições à parte (todos os movimentos sociais tem as suas), o Congresso sediou um interessante seminário sobre música brasileira. No pouco que observei, posso destacar o músico e pesquisador DJ Tudo comentando sobre o fato de, segundo ele, 97% da música brasileira estarem fora de todos os circuitos, sejam comerciais ou independentes, e estarem espalhados pelas vozes e instrumentos de repentistas, congadeiros, benzedeiras, folieiros e tantos outros representantes da cultura popular.
À noite um interessante debate sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte reuniu o diretor do documentário Belo Monte – O Anúncio de uma Guerra, André Vilela D’Elia, e o blogueiro Leonardo Sakamoto, dentre outros que sinceramente não consegui identificar. O que mais pude tirar de proveitoso da discussão foi a percepção de que o argumento central contra a construção da megausina não é o do alagamento da floresta ou do deslocamento de comunidades indígenas.
O ponto central em debate é o impacto socioeconômico de uma obra que se sustenta num modelo de desenvolvimento dos anos 1970, o mesmo que durante a ditadura militar rendeu ao Brasil os faraônicos Itaipu e Transamazônica. Superficialmente falando, os debatedores sustentaram (e o argumento faz todo sentido) que o aumento da violência, da precariedade das condições de moradia e de cidadania das cidades próximas à obra não compensam os benefícios produzidos pela construção.
O Circuito Fora do Eixo é, hoje, a mais interessante iniciativa de mobilização na área da cultura. A visibilidade do movimento é, hoje, muito grande, o que traz também muitas críticas sobre o processo. Dentre elas, a adesão a grandes empresas, como a Vale, patrocinadora do Congresso, para o financiamento de projetos dos coletivos. Também se critica por aí uma espécie de autoidolatria do grupo, que por vezes se dá o título de rede das redes e prega a todos um espírito revolucionário do qual muitos desconfiam. A verdade é que a iniciativa tem muito mais a acrescentar do que a subtrair no atual panorama cultural, goste-se ou não do que é dito ou praticado lá dentro. Tirar as pessoas da inércia não é fácil, e o que a turma do Capilé tem conseguido convencer muita gente a dar um F5 nos próprios conceitos.
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