Quando se fala na relação entre informática e educação, uma pessoa é referência unânime. Léa Fagundes é pedagoga e psicóloga, doutora em psicologia do ensino e vem fazendo história como uma das primeiras vozes defensoras da informática aplicada à educação − ou da “integração da escola na cultura digital”, como prefere chamar. Fundou em 1973 o Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS) e foi pioneira nos projetos, governamentais ou não, de uso de computadores como ferramenta de ensino. Influenciada pelo pensador suíço Jean Piaget, a professora Léa, como é conhecida, usa a visão sistêmica para entender e explicar que criança não precisa ter aula de informática. “Criança não precisa ser ensinada, ela aprende”, defende a professora, premiada em 2000 com a Ordem Nacional do Mérito Educativo e, em 2006, com um prêmio da Unesco. “Eles são nativos da cultura digital”, completa.
Guia das Cidades Digitais - A senhora estuda informática na educação há mais de 20 anos. Qual é a maior vantagem do software livre na área educacional?
Profa Léa Fagundes - Quando começamos, não existia software livre. Só existiam os programas proprietários. O mais importante tem sido a comunidade de software livre. Todo o processo e a atitude da comunidade. Nossa grande vantagem de usar o software livre é de, em primeiro lugar, não ficar dependente de produtos que são gerados para satisfazer a concepções pré-concebidas dos técnicos que os fazem. Como nossa concepção de educação é revolucionária, não encontrávamos os recursos que combinassem.
Guia das Cidades Digitais - Como surgiu no Brasil o uso de informática na educação?
Profa Léa Fagundes - Em 1980, quando começamos, o projeto era da Secretaria de Informática, que era diretamente ligada ao gabinete do presidente Figueiredo [os engenheiros da Secretaria de Informática eram da Segurança Nacional]. Saiu um edital para formar cinco centros universitários de pesquisas e experiências de informática na educação. Nós nos candidatamos, junto com outras 24 universidades federais e fomos uma das cinco escolhidas. A primeira proposta foi criar, em cada Secretaria de Educação, centros de formação de professores e laboratórios para que esse grupo de professores das secretarias formassem os professores nas escolas.
Conseguimos muitos computadores e vieram dois professores de cada secretaria estadual de educação. Este foi o início. A partir desses cinco centros, conseguimos que todos os Estados pudessem ter, no governo estadual, um centro de formação de professores e de uso de tecnologia nas secretarias estaduais de educação. A partir daí, ampliamos e começamos a fazer centros em algumas escolas, em outras universidades, etc.
Tudo isso era muito lento, pois computadores eram muito caros. Por exemplo, na segunda metade da década de 80, planejamos um curso para o qual teríamos de comprar 50 computadores para as 27 secretarias de educação e formar professores em cada secretaria. Foi aprovado e, quando finalmente a verba foi liberada, a inflação tinha "comido" e só pudemos comprar 25 computadores.
Esse projeto foi o embrião do que hoje chamamos de Proinfo, o Programa Nacional de Informática na Educação.
Guia das Cidades Digitais - E como se desenvolveu posteriormente, com a internet?
Profa Léa Fagundes - Na segunda metade da década de 90, foi criada a Secretaria de Educação a Distância. Dentro dela, foi incluídas duas tecnologias que não eram usadas: TV educativa e informática na educação.
Fui chamada para assessorar um projeto de informática na educação dentro da secretaria de Educação a Distância. O projeto, o melhor já realizado no Brasil dentro desta área, foi criar Núcleos de Tecnologia Educacional, os NTEs, em todo o país, baseado no modelo de Novo Hamburgo (RS), que em 1980 se tornou o primeiro município brasileiro a colocar computadores nas escolas. Com esse modelo criamos o Proninf [como o Proinfo era chamado antigamente], que pretendia criar NTEs em todo o Brasil.
O Secretário de Educação a Distância da época, Pedro Paulo Poppovic, foi percorrer os EUA para ver as experiências de lá. Voltou com o depoimento dos professores americanos que diziam que o Brasil não teria condição de fazer isso. Foi quando chamei o secretário e disse que seria indispensável a internet. Isso aconteceu por volta de 1994. No início, para testar, fazíamos a conexão por rádio amador, em nosso laboratório.
Começamos a formar professores a distância e presencial, mas a internet não era web, era diferente. Formamos a distância 24 professores do Ministério da Educação da Costa Rica. Foi nosso primeiro curso a distância na UFRGS. As pessoas achavam que não poderíamos fazer isso. "Como vocês vão ensinar para professores da Costa Rica que nunca vieram ao Brasil, que não falam português?" Então fizemos uma experiência e, enquanto eles nos ensinavam espanhol, nós ensinávamos português.
Guia das Cidades Digitais - A sua formação é de psicóloga. Como se interessou e passou a atuar em informática na educação?
Profa Léa Fagundes - Inicialmente eu não era psicóloga, era pedagoga, ou seja, já era da área de educação. Sempre fui "maluca" por pesquisar em educação recursos novos para "salvar" as crianças. Como pedagoga, trabalhava com psicologia escolar e dificuldade de aprendizagem de alunos. Em 1975, criamos na UFRGS o Instituto de Psicologia, a fim de criar psicólogos em várias habilitações. Entrei sendo professora, pois não havia psicólogo escolar.
Na época em que estávamos montando o curso de psicologia, trouxemos do exterior especialistas para indicar como as coisas estavam caminhando as coisas internacionalmente. Havia diversas experiências de psicólogos americanos, como Skinner [Burrhus Frederic Skinner, um dos estudiosos do behaviorismo], que experimentavam o uso de tecnologia na educação e as coisas não melhoravam.
Aliás, melhorava a criança que não era pobre. A criança de classe média, com todas aquelas metodologias de ensino, aprende. Quando é pobre, não tem jeito. Mas por que seria? Lesão na inteligência, diferenças entre as crianças bem alimentadas? Isso me incomodava. Nenhuma psicologia me respondia, então fui estudar Piaget [Jean Piaget era um estudioso suíço que pesquisou processos de aprendizagem e de captação de conhecimento], que tem teorias dificílimas. Estudando este pensador, eu – que vivia pesquisando para entender a inteligência da criança e o fracasso da criança − vi que não é a criança que fracassa. Qualquer criança que não seja doente ou não tenha lesão tem a mesma inteligência das outras e pode aprender. É a escola que fracassa.
Soubemos que tinha voltado à Argentina um médico, Antonio Battro [atualmente, especialista na área e consultor do programa Um Computador por Criança], que havia trabalhado por quatro anos com Piaget na Suíça. Convidamos, ele veio ao Rio Grande do Sul, trabalhamos durante seis anos juntos, criamos um grupo de estudos, fizemos seis congressos brasileiros e, depois de um tempo, ele nos convidou para conhecer o trabalho que estava desenvolvendo, usando computadores para tratar crianças com deficiência no Hospital del Niño, em Buenos Aires.
Eu dizia que não queria saber de máquina - “sou humanista”. Fomos lá, conhecemos e ficamos “loucos” com o que vimos. E pensei: se eles fazem com crianças com deficiência, não posso fazer com crianças saudáveis? Foi assim que, quando chegamos ao Brasil, decidi que íamos trabalhar com computador. E é por isso que entendo as resistências dos professores de hoje em dia e, para quebrar isso, gosto de levá-los para ver a coisa acontecendo, para ver os olhinhos das crianças e como elas mudam.
Guia das Cidades Digitais - É mais difícil ensinar criança ou professor, na área de informática na educação?
Profa Léa Fagundes - Professor! Criança não precisa ser ensinada, ela aprende. Mas o professor quer ser ensinado. “Eu tenho que ter aulas de Word”, eles dizem. E eu respondo: “não dou aula de Word nem para as crianças”. Quer escrever? Pega o processador de texto e usa. Há crianças, nos projetos que fazemos, que “inventaram” processadores de texto, para entender qual é a mágica da coisa.
Guia das Cidades Digitais - Isso tem a ver com uma outra característica do software livre na educação, que é a de não só permitir que sejam criados programas para uso em escolas e aulas, como também permitir que as próprias crianças criem pequenos programas, certo?
Profa Léa Fagundes - Exato. Tendo me formado em psicologia, fiz doutorado em psicologia defendendo isso. Fiquei cinco horas defendendo minha tese, pois a banca não entendia o que tinha a ver psicólogos mexerem com o computador. E isso mostra que a falta de percepção sobre a visão sistêmica está em pessoas de todos os níveis de formação.
Guia das Cidades Digitais - Informática na educação ou educação na informática?
Profa Léa Fagundes - Prefiro dizer “integração da escola na cultura digital”. A cultura digital muda tudo. É importante dizer que já saímos da era industrial e entramos na era digital. Essa nova cultura tem características totalmente diferentes. O problema é que ainda se usam alguns recursos novos para fazer as coisas na lógica industrial. É a transição que está ocorrendo. As pessoas que nasceram depois de 1985 se viram muito melhor. Nós, mais velhos, somos imigrantes; eles são nativos da cultura digital. Tenho um neto que, com nove anos, me viu lendo um manual para aprender a usar o Word e me perguntou “para que manual, vó? Eu te ajudo”. E começamos a fuçar e aprender a usar o programa.
Guia das Cidades Digitais - E nessa nova cultura digital, as escolas estão preparadas para aplicar a informática na educação?
Profa Léa Fagundes - Não precisa necessariamente as escolas estarem preparadas. As crianças estão. O problema da escola é aceitar mudança. A cultura digital traz novas habilidades e não tem limites. E o software livre é fantástico na educação, pois, mesmo que não tenha o software já pronto, você cria o que precisa, o que imaginar. Por isso não tem limites. Ele abre uma mente de hipóteses permanentes de invenção. Como normalmente se aprende? Criando e negociando. E é isso que o software livre faz: as crianças aprendem negociando e criando soluções. Em resumo, o software livre não foi criado para fazer isso; ele é a cultura digital que gera. Essa geração que cresceu com familiaridade e inventando dentro da tecnologia tem outro tipo de pensamento, outro tipo de funcionamento da cognição. Software livre, para mim, é fruto da geração que nasceu na cultura digital.
Data: 10 de julho de 2009
Autor: Maria Eduarda Mattar
* fonte: Guia das Cidades Digitais
0sem comentários ainda